12.2.08

Vento gelado, chuva e calor


Houve um tempo em que eu era ranzinza, muito ranzinza. Procurava o ponto mais negativo de todas as coisas, para em seguida cumprir a tarefa demolidora de casmurro com zelo quase prussiano. Mas casmurro, no fundo, nunca fui: achava o ápice da elegância enfileirar reclamações sarcásticas contra tudo que me parecesse incômodo, do tempo ao trânsito, da política ao futebol.

Era, vamos colocar assim, uma estratégia retórica. Alguém que saiba metralhar críticas aleatórias passa, por motivos que não compreendo, a impressão de possuir uma inteligência superior. Se o fizer com termos e locuções bem escolhidos, então, proporciona boas risadas aos circunstantes; com isso, sempre recebe convites para as soirées de uísque e charutos. Bom negócio, que não passou despercebido de quase nenhum dos nossos cronistas e literatos em geral, essa gente que, como sabemos, jamais dispensa uma boa dose e um bom fumo, contanto que não seja cubano.

De repente, percebo que minha rabugice me abandonou. Ainda pronuncio, sim, comentários maldosos; só que, agora, escrevo com irritação e agressividade apenas quando o assunto me irrita e agride. Admito que esse ainda é um gênero predominante, com folga, neste espaço. Mas, que posso fazer?, este mundo está recheado de coisas irritantes e agressivas.

É certo, ao menos, que meus comentários sardônicos se despiram da gratuidade preguiçosa que os engessava. É uma lástima que essa leviandade ainda bloqueie a eficácia de tantas mentes brilhantes por aí. Mas acho que escapei, pelo menos por enquanto. Resultado: agora estou livre para sustentar uma opinião favorável a qualquer coisa sem, com isso, me sentir uma Poliana alienada (Céus! Sacrilégio! Cometi uma tautologia! Azar...).

Resumindo, é libertador e recomendo a todos.

Pois agora que já compartilhei a constatação revolucionária, quero acrescentar o relato de como cheguei a ela, para não passar a impressão de só pensar em abobrinhas enquanto vou rabiscando a esperar o metrô. Os processos da vida, como se sabe, vão passando, mas nós não costumamos nos aperceber. Até que, belo dia, eles se revelam de supetão, como um pontapé na canela. Daí nossa dificuldade atávica em reconhecer o devir, ele que é tão evidente...

Muito bem: terminou ontem minha breve passagem (breve e agitada, a propósito) pelo Brasil. Voltei com tantas impressões na cabeça, e tão fortes, que não sei nem por onde começar a escrever. Conjecturando sobre minha própria confusão mental, saí de casa – hoje foi um belíssimo dia de sol – e dei ao vento a oportunidade que ele esperava para me agredir com um sopapo frio. As temperaturas, logo descobri, andam variando entre 1oC ao nascer do dia e 10oC durante o almoço.

Contra um velho hábito que eu costumava tomar por natureza minha, a sensação me pareceu muito agradável. A ponto de começar a sorrir em plena rua, ó, escândalo inaceitável nesta cidade. Na minha atitude normal, eu não hesitaria em maldizer o clima; na secura do inverno, não menos do que na sudorese do estio. Ou seja, algo mudou. Hoje, sou um mortal que aprecia os casacos quando são necessários, tanto quanto respira o mormaço carioca com a camisa aberta, satisfeito. Dou vivas aos opostos e não vejo motivos para agir de outra maneira.

Como quando, na companhia de um punhado de amigos e uma multidão de desconhecidos, eu subia uma ladeira da velha Laranjeiras, entre os casarões e atrás da batucada. Fazia calor, é claro. Uma fornalha de foliões que seria pior ainda se o céu não se mantivesse pudicamente encoberto. A turma toda entornava cervejas e reclamava da temperatura opressiva; sem por isso parar de pular. Eis que chega a chuva. Diz a lógica mais castiça que, eliminado o motivo, as queixas devem cessar. Mas qual. O folião, pelo visto, aceita melhor o tostar do que o molhar, embora solte impropérios contra ambos. Enquanto eu me refrescava com o arremedo de chuva, meus vizinhos corriam para se proteger e rompiam com São Pedro.

Foi assim que descobri o quanto mudou minha atitude perante o mundo, conforme expliquei. Creio agora, piamente, que mesmo na mais ácida das personalidades é fundamental deixar reservado um canto para o bem querer e o bem estar. Ao cronista bruto, paz de espírito parece, às vezes, vício de poeta; mas nem tudo na poesia é vício. O olhar sobre o mundo não pode perder jamais a rigidez crítica que o solidifica. Mas mesmo o que é sólido pode trincar e espatifar-se; já a ternura e o lirismo dão a mistura que faz de qualquer idéia um organismo saudável, flexível e elástico. E o que, a um tempo, é maciço e flexível, ora, não quebra jamais.

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9 Comments:

Blogger Ricardo C. said...

Diego, vale um chute? Vc anda na faixa dos 40, apesar do português algo castiço — que aprecio e com o qual me identifico, diga-se de passagem. E se errei feio, confesso que não é o importante. Basta dizer que ler esta sua crônica foi um imenso prazer, e que hora ou outra o meu estado de espírito tem funcionado de forma igualzinha, mesmo carecendo da qualidade da sua prosa...
Abraços

00:53  
Blogger Critical Watcher said...

Cara, essa coisa de personalidade me deixa tão confuso. Já me vi assim várias vezes: sem saber como ser diante de determinadas platéias. Sinto que, por vezes, escondo algo que transborda. E isso me deixa rigidamente temerário - um problema. Mas é exatamente como você disse... O tempo acaba mudando o que antes pensávamos ser certo. E isso pode até ser um choque pra quem está lidando com tantas mudanças. Imagine-me nisso, imagine minha idade! O caos está feito!

01:18  
Blogger Nat said...

Muito bom o texto. Vim lá do Ricardo, quando vi o elogio dele hehehe Bjs

01:41  
Blogger stranger e tal said...

eu adoro o jeito q vc escreve, mas me dá vergonha do jeito q eu escrevo...hehehe
então vc se divertiu nas terras tupiniquins? tem q voltar mais vezes!

04:23  
Anonymous Anônimo said...

Ainda ando com espírito rabugento... Vá lá, tenho meus motivos (espero que os tenha, ou seria uma imensa perda de tempo).

Em todo caso, tem sua diversão...

04:34  
Blogger Carlos Josemberg said...

paulão,

vc está só fazendo charme para ter um bom texto.

vc continua rabugento.

abraço saudoso

josemba

13:53  
Anonymous Anônimo said...

Adorei o texto. Acontece assim comigo. Viva a vida sem rabugice.
Para comemorar, um post para os Ami@os virtu@is no Blog Linha.
Abraço.

20:11  
Blogger Dauri Batisti said...

Ae Diego Viana.
Caí aqui no seu blog e adorei. Depois vou ver o outro.
Parabéns pelo texto. Muito legal.
As mudanças, nem vou comentar...é um sabor a degustar. Eu mesmo sinto, lendo seu texto, o gosto bom das minhas próprias transformações.

Abração

14:49  
Blogger deboraHLee said...

Grande aprendizado!
Deixar de ser irascível é uma grande conquista. Indício de verdadeira maturidade.
Parabéns.

22:58  

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