Aqui começa a arte

Vendo enfrentar a escadaria aquela figura trôpega, esfarrapada, mal-cheirosa e barulhenta, os dois enormes seguranças não tiveram dúvida. Bastou uma rápida troca de olhares e compreenderam como que teriam de proceder, mesmo que não tenham visto os olhos um do outro por trás dos óculos de sol, debaixo da noite abafada de quase carnaval. Era o trabalho deles. E eles sabiam fazer seu trabalho. Respondendo como uma muralha de pedra ao discurso ilógico do barbudo banguela, cada um enfiou seu braço por baixo de uma axila, e já iam atirar aquele saco de batatas degraus abaixo, como se fosse um incômodo miserável, quando um berro estridente, projetado do interior da galeria, os constrangeu a interromper o gesto.
"Não, não! O que é isso?! Podem parar! Podem parar! O que é isso?! Não, não!" Era o próprio artista que se esgoelava, braços projetados, uma mão espalmada, a outra bem firme ao redor da Piña Colada. Estranho, o contraste entre a indumentária toda negra, colada ao corpo; a mão rechonchuda, tão branca, doentia; e o pára-sol de papel e palito, numa profusão de cores primárias, que encimava o coquetel. "Podem largar! Já!"
Pois largaram. O vernissage era dele. A festa, idem. O trabalho, os convidados, as obras. Enfim, tudo. Por aquela noite, era ele que mandava. Sem um traço de delicadeza, a grande massa amarfanhada foi ao chão com alarde, e a garrafa quase vazia que carregava escapuliu de sua mão, rolou pelo chão e foi se espatifar em contato com o batente da porta. E a porta era de vidro, mas não deu mostras de querer trincar. O artista, todo sorrisos, agachou-se ao lado do corpo andrajoso que gemia. Encarou-o. Sorriu para ele. Mas manteve distância. "Não ligue pra esses brutos". Referia-se aos seguranças, já restabelecidos em sua posição de sentido. Mãos às costas, faziam de conta que não escutavam. Caras amarradas, espinhas eretas, verdadeiros blocos de pedra. "Você é bem-vindo. Aliás, você é a resposta para os meus problemas. Daqui a meia hora, começa minha exposição. Não estou nada satisfeito com meu trabalho. Pensei tanto em cada obra dessas, mas... Não sei! Falta alguma coisa. O elemento espontâneo!... Inesperado!... louco..."
"Foi meu orixá que te trouxe aqui! Rora-ieiê-ô, Oxum!"
O bárbaro de olhos inchados escutava através da cabeça balouçante. À guisa de acompanhamento, emitia grunhidos de inspiração caprina. De súbito, esticou a mão para a Piña Colada. Mas seus olhos preferiam buscar a luz dos postes. O artista ficou satisfeito, embora um pouco reticente, em ceder seu copo. "Pode entrar aí, beber o que quiser, fazer o que der na telha. Pegue as obras e estrague! Suje! Atire no chão! O que você tiver vontade!"
O paladar estragado pelas décadas de álcool quase puro não apreciou a doçura do coquetel. Ainda a balir, pôs-se de pé, o intruso, e largou o copo, cujo conteúdo, misturado aos cacos de vidro, espalhou-se pelo calçamento em configuração de aparência cartográfica. Os minúsculos cristais aureolavam os espólios da garrafa. Foi-se embora o punhado de ossos, cambaleante, imprecando contra alguém ou algo. Os seguranças mantinham guarda, impassíveis como soldados britânicos. O artista, que não leva desaforos para casa, reservou alguns momentos para encarar a sujeira, imóvel senão pela mandíbula que mastigava a si própria. Em seguida, puxou do bolso um cartão e uma caneta. Rabiscou: "Aqui começa a arte, e aqui ela termina". A caneta voltou para o bolso. O cartão foi endereçado ao solo, logo abaixo do pára-sol colorido. Sem mais, o artista retornou para o interior da galeria, onde o aguardava, batendo o pé e bufando, o marchand mais importante da cidade.