25.6.07

Entre Roma e o céu

Junho vai chegando ao fim, e quase esqueci que posto em blogs. Melhor dizendo, quase esqueci até que existo. Este 2007 tem sido o ano mais curto de minha vida. Ainda ontem, era janeiro. Agora, já passou a noite de São João. Nestas terras setentrionais, o calor está no ápice e os dias começam, lentamente, a encurtar. A primavera passou, mal a vi. Onde estive todo esse tempo?

Ainda assim, curiosamente, no meio desse ano enlouquecido, houve junho. Ainda não terminou, mas foi um dos meses mais carregados que já vivi. Respirei apenas no intervalo entre exames e viagens. Quando terminei a última prova, cheguei a provar uma breve sensação de vazio. Mas ela nem pôde se estabelecer. Graças a uma promoção fantástica da superintendência francesa de trens, mal depus a caneta, alcei a mochila, agarrei a patroa pela mão e partimos para o sul.

Não estou reclamando. Aliás, bem ao contrário. A verdade é que a passagem do tempo me angustia. Nesta nossa vida, que é o que de mais exótico há no mundo, temos sempre muito a realizar: cumprir, criar, descobrir. Nessa constante tragédia em potencial, cada grão que vence o gargalo da ampulheta simboliza a limitação de nossa carne. Mas nosso espírito, em sua paixão pelo infinito e pelo absoluto, recusa-se a admitir a impotência. Quanto maior a paixão que temos pela vida, mais exigente, angustiante e terrível ela pode se revelar.

É por isso que um mês como este junho, em que cada dia tem a carga de acontecimentos que melhor caberia a uma semana, merece ser festejado. Recebo-o como uma bênção, incrustado em um ano desabalado como o atual. Uma bênção com gran finale: escrevo tendo como testemunha a lua crescente dos arrabaldes de Roma. Trata-se do mesmo disco prateado que testemunhou a violação de Lucrécia e o suicídio de Sêneca. Bem se vê como, monótona em sua órbita, essa lua serve de testemunha para qualquer acontecimento, do grotesco ao grandioso, do histórico ao medíocre.

Páginas muito mais graves já se escreveram entre o satélite e este pedaço de chão. Está certo. Mas quem o pisa agora são meus pés. Este instante, em junho de 2007, é vulgar em comparação aos demais que o nome de Roma evoca nas imaginações sensíveis, mas saiba a lua que, para mim, é um triunfo magnífico. Pela primeira vez em muitos dias, tenho acesso a um computador com internet e blog. Finalmente, tenho tempo e disposição física para escrever e postar um texto, mesmo que só para ressuscitar meus pobres sites.

Os blogs, abandonados, vinham pedindo atualização. E tenho muito a atualizar. Em pouco mais de uma semana, estive envolvido pelas atmosferas de Turim, Gênova, La Spezia, Monterosso e as demais Cinque Terre, Pisa, Florença, Chiusi, Chianciano Terme, Pienza, Montepulciano, Siena, San Gimignano. Respirei todos esses ares, provei suas culinárias, admirei os traçados de suas ruas. E enfim, Roma. A cidade eterna, para a qual todos os caminhos trazem. Desde sempre, sonhei com esse nome. Eis-me. Sapatos rasgados, fronte crespada, bolsos vazios. Mas, repito: eis-me.

Volto a Paris no meio da semana. A partir de lá, pretendo relatar em ambos os blogs, com abordagens diferentes (como combinado), minhas impressões e os pensamentos que este fascinante, caótico e belíssimo país me causou. Enquanto isso, se meu Viaggio in Italia não saiu do forno, recomendo um produto de qualidade muito superior: o de Roberto Rossellini.

Ciao, amici!

PS: Este é o primeiro e, espero, último texto que publico simultaneamente nos dois blogs.

11.6.07

A pequena porta


Eu dizia alguma coisa sobre a dificuldade de encontrar trabalho. Distraído, falando por falar, ao mesmo tempo em que acompanhava com o olhar preguiçoso o desenho das rachaduras no concreto da parede. Acreditava que Ricardo, meu amigo desenhista, também estivesse distraído. Até que, de um segundo para o outro, ele agarrou meu braço com uma força exagerada.

Interrompi-me a contragosto. Ricardo tinha os olhos arregalados, fixos num ponto além-trilhos. Segui a linha que partia de seu rosto, mas não consegui identificar o que tanto lhe chamava a atenção. Voltei-me novamente para ele, tentando demonstrar impaciência. Ele parecia crer que a coisa era evidente. Não me explicou nada, apenas fez um gesto breve e brusco com o pescoço. Só então me dei conta de que causara tanto transtorno em meu colega.

Por mais prosaica que pareça, era uma porta aberta na grade que separava os trilhos de nossa linha da que vinha em direção oposta. Uma porta aberta. Não era a porta de uma mansão ou de um jardim; era simplesmente o gradil entre dos sentidos do metrô, aberta para permitir a passagem dos funcionários da limpeza e lhes facilitar um pouco o pesado serviço - tão pesado que eles não conseguiam dar conta, a julgar pelo estado da estação.

Era uma portinhola humilde, medíocre, enferrujada, que não se prestava nem a esconder o que havia do outro lado. Não tinha naquela porta nada que pudesse chamar a atenção de alguém. Mesmo assim, estávamos ambos olhando para ela.

-Não consigo ver uma porta aberta, ele confessou, que fico com vontade de atravessá-la. Não resisto.

Como fiquei sem resposta, e ainda o encarava com uma expressão de incredulidade, ele se pôs a dar explicações.

-É uma mania minha, sou assim desde a infância. Vejo uma porta e quero atravessar, nem que seja para voltar logo em seguida. É como um tique nervoso!

Eu soltei uma risada. Ele me acompanhou de leve, depois deu de ombros e voltou a encarar seu objeto bem particular de desejo. Achando que o caso estava encerrado, comentei:

-Essa porta não tem nada de especial. A bem da verdade, não é propriamente uma porta. É só uma passagem no meio da grade. Não vejo o que pode te interessar nela.

Um pouco encabulado, ele confessou não conhecer a origem dessa sua fixação pelas portas abertas. Um impulso irracional, definiu. Só pude concordar. E acrescentei, enfático, que era engraçado. Mas ele não concordava, e deixou claro seu ponto de vista com um olhar. Calei-me.

-É mais forte do que eu, ele disse.
-Imagino, respondi. Mas sua expressão apenas se tornou mais determinada. Repetiu:
-É mais forte do que eu. Quanto falta para chegar o trem?

Por reflexo, estiquei o pescoço. É claro, não vi nada no túnel que pudesse dar uma indicação. Mas ele interpretou meu gesto irrefletido como uma adesão à sua causa.

-Você está brincando, claro.
-Quem dera. - Já se desembaraçava da mochila. - Hoje é domingo, vem menos metrô. Ainda vai demorar a chegar o próximo.
-Mas não tem nada de interessante! O outro lado é idêntico a este, não tem nada de mais...
Ele deu de ombros, mais uma vez.
-É como eu disse. É mais forte do que eu.

Então, ele tomou ar e me deu uma explicação, em tom de confidência. Disse que se via no direito de desejar aquela pequena transgressão. Intimou-me a lembrar de alguma vez em que eu o tivesse visto fazendo algo proibido ou condenável. Queixou-se de não conseguir jamais tomar atitudes drásticas, polêmicas, malcriadas. Confessou que, às vezes, se achava o mais chato e desinteressante dos seres humanos. Atentei para o fato de que atravessar aquela passagem não seria, de forma nenhuma, uma transgressão comparável a saltar o muro de uma mansão ou desviar os recursos de uma instituição de caridade. No máximo, arrematei, seria uma molecagem.

Mas era precisamente o que ele queria. Uma molecagem. A idéia de uma travessura inconseqüente fez seus olhos brilharem.
-Acho que eu não tive infância. Só pode ser. Nunca fiz molecagem, nem mesmo quando era moleque.
E concluiu:
-De hoje, não passa.

Lembrei a ele que o metrô funciona pela energia elétrica que circula nos trilhos. Descer é perigoso. Cabos de alta tensão, adverti. Carreguei o tom da voz com uma dramaticidade talvez ridícula.

-Você correria risco de vida. - Mas Ricardo não se comoveu.
-Eu entendo o que você quer dizer. Você está pensando que é uma idiotice minha, e tem razão. Mas poderia ser pior, pense bem. Imagine, eu poderia me arriscar dirigindo como um louco ou fazendo roleta-russa na própria cabeça. Mas, para não ser eletrocutado, basta não pisar nos trilhos. É simples assim. É o meu jeito burguês de brincar com o perigo, arrumar alguma adrenalina. Relaxa.

Não relaxei, mas tampouco o impedi de aproximar-se da beirada da plataforma. Sua respiração era forte, cada inspiração se fazia acompanhar de um assovio. Eis que me descubro esperando o metrô na companhia de um maluco. Comecei a me questionar. Não seria o caso de deixar de lado meus receios e apenas esperar que ele realizasse seu impulso transgressor? Só para acabar com tudo aquilo, de uma vez por todas. Se ele não pisasse onde não devia, se não chegasse um trem, se não aparecesse um policial, qual seria o problema? Ele desceria, espantaria os camundongos cinzentos, atravessaria a tal da porta aberta e atingiria a outra linha. Nada vendo de interessante, pensei, acabaria voltando no momento seguinte. A princípio, incólume. Com isso, ele dormiria mais satisfeito, teria o que contar às moças nos bares, daria algumas risadas, aliviaria a tensão, e pronto. Sem precisar beber, ou pagar um psiquiatra, ou assaltar um banco. Compreendi, finalmente, seu argumento. Decidi não intervir.

Mas percebi que o destino, ou sei lá o quê, intervinha em meu lugar. Tive a sensação, ao longe, da vibração que anunciava a marcha pesada da composição. Com o canto do olho, divisei o reflexo dos faróis que se aproximavam. O alívio que eu deveria sentir, porém, transmutara-se em decepção.

Quis compartilhar com ele meu sentimento; foi sorte. Ao voltar o olhar, dei com suas costas viradas, já esticando o pé para alcançar o cascalho que cercava os dormentes. Com o pouco sangue-frio que me restava, puxei-o de volta. Mas a tarefa estava além de minha capacidade. Ele se debatia, tentando libertar-se da ameaça que eu representava para seus desígnios. Não percebera que uma ameaça bem mais concreta estava a caminho. Reclamou, ofendeu-me aos berros. Seu rosto ficou vermelho, bem diante dos meus olhos, e sua voz nervosa abafava minhas tentativas de alertá-lo para a aproximação do perigo.

Num último esforço, dei um impulso para puxá-lo, acompanhado de um grito. Ao mesmo tempo, o condutor do metrô notou a presença de meu insensato amigo e atacou sua buzina roufenha, que reverberou com violência. Assustado, Ricardo se entregou finalmente ao meu puxão e subiu de volta para a plataforma.

Caímos estatelados no chão, ofegantes. Meu cotovelo se chocou contra o concreto. Doeu, mais tarde incharia. Parada a composição, bem à nossa frente desceu um homem, alto e barrigudo, que mal tomou conhecimento de nossa presença e por pouco não pisou no joelho de Ricardo. Levantamo-nos sem dizer palavra, sob efeito do susto, impressionados com a proximidade ainda sensível de um acidente mortal. À nossa frente, a porta aberta do metrô, como se esperasse apenas por nós, o interior todo iluminado, com algumas pessoas mascando chicletes e lendo revistas.

Lado a lado, encaramos aquele ambiente silencioso e estéril; asséptico, mas sujo. Ninguém, de dentro, levantou os olhos em retribuição a nosso olhar afogueado. Ricardo estalou os dedos e esticou a mão para a mochila, largada ao lado. Engoli em seco. Tive um ligeiro sobressalto quando soou o aviso sonoro. Estranhamente, eu não o esperava, esquecera sua existência. As portas automáticas fecharam-se sumariamente. Em sua custosa aceleração, partiu o trem com seus usuários, chicletes e revistas. Ficamos nós, a espreitar a porta aberta.

7.6.07

Pé-frio, abnegado e feliz


Ontem à noite, telefonei para meu colega Diego de Oliveira com a intenção de provocá-lo. Trata-se de um amigo brasileiro, interessante sobretudo por suas contradições: é, ao mesmo tempo, carioca e paulista, capitalista e socialista (como a China?), economista e artista, roqueiro e sambista. Vá entender a figura! Acho que a única cláusula pétrea em sua constituição é sua paixão irracional pelo Fluminense. Tão irracional que ele é capaz de todo tipo de sandice pelo seu clube do coração. Senão, vejamos:

Perguntei-lhe, por telefone, se pretendia varar a noite para acompanhar, pelo rádio, a final da Copa do Brasil contra o Figueirense, em Florianópolis. Com uma dificuldade enorme, até engraçada, de manter a voz estável, ele respondeu que não. "Como não?", retorqui. "Não é todo dia que o seu time chega a uma final! O que é varar uma noite, tendo a oportunidade de ver um título inédito? Você vai desperdiçar isso, só porque precisa acordar cedo e ir trabalhar?"

"Não é isso", ele respondeu, algo vexado. "É claro que eu passaria a noite inteira ouvindo o jogo via internet... mas não posso." Pensei que a culpa fosse de sua conexão, que estivesse falhando. Não. Pensei que ele não fosse, por algum motivo, dormir em casa. Tampouco. A explicação, quando o rapaz finalmente cedeu às minhas pressões, me levou às gargalhadas. "É que, pelo rádio, sabe como é... Eu sou muito pé-frio!"

Ele se ofendeu com minhas risadas e, como todo supersticioso, desenvolveu uma argumentação estatística para provar como, de fato, seria perigosíssimo para seu time se ele colocasse os fones no ouvido e se conectasse à Tupi, à Globo ou à CBN. Trouxe à memória outros jogos que acompanhou. Traumas, desclassificações, títulos perdidos, gols espíritas. Uma evidência, no seu entender, ainda mais forte: esses gols costumam acontecer logo depois que ele se conecta. Que tragédia! Sinistro, muito sinistro, diria Januário de Oliveira.

Por outro lado, Diego já se manteve afastado das tentações radiofônicas em outras ocasiões. Sucesso: belas vitórias, goleadas, gols mágicos, títulos. "É o óbvio ululante", ele exclama, citando o ídolo maior da literatura tricolor, Nelson Rodrigues. Esse Diego, trata-se de um pé-frio dos piores. O Fluminense deveria pagar alguém para segurar os braços de seu torcedor, cada vez que ele tente acompanhar uma partida.

É uma maldição. Uma sina. Seu destino é ficar nervoso, em silêncio, esperando que se esgotem as quase duas horas de duração de um jogo para, finalmente, ficar sabendo apenas do resultado e acompanhar os melhores momentos. Ter a sorte de seu clube, e dos demais 10 milhões de torcedores, entre as mãos, é uma responsabilidade que poucos conseguiriam suportar. Mesmo à distância, separado de seu Tricolor por um oceano enorme, só Diego é que decidirá o título, mais do que Renato Gaúcho, Roger, Magrão ou Carlos Alberto. O auto-controle de um jovem exilado conta mais para uma conquista do que os treinamentos nas Laranjeiras os as contratações.

Muito bem, então. É sorte do Fluminense que seu torcedor mais decisivo seja um abnegado. Como eu disse, é alguém que faria qualquer sandice pelo seu clube. Não, claro, como alguns malucos que viajam o país inteiro atrás de um time. Pelo contrário. O maior ato de amor de Diego é não ver, nem ao menos escutar as partidas.

Acontece que, esta manhã, encontrei o dito-cujo no corredor. Cambaleava, pobre diabo, com sua camisa um pouco amassada deixando entrever, por debaixo da gola, o uniforme de seu time. Tinha olheiras do tamanho de castanhas e um sorriso de cãibras. Quando deu por mim, veio me abraçar como se faz no Brasil - mas aqui, pega um pouco mal. Sua aparência exterior não me enganou: ele não pregara o olho.

"Então você ficou acordado! Não resistiu ao encanto da partida? Irresponsável!"

Ele sacudiu a cabeça. "Não acompanhei o jogo... mas estou louco de felicidade! É campeão!"

Como se eu acreditasse. "E essas olheiras? Acha que me engana?"

"Estou falando sério. Não vi o jogo, mas também não consegui dormir. Fiquei a madrugada inteira acordado, deitado na cama, olhando para o teto. É um desespero. Você não sabe como é terrível, saber que a bola está rolando, e você não pode acompanhar. Estamos ganhando? Estamos perdendo? É redenção ou humilhação? Impossível dormir. Só levantei quando, quase às cinco da manhã, meu pai me telefonou para dar a notícia."

E repetia: "É campeão, é campeão, é campeão..." Para ser honesto, essas manifestações de alegria futebolística me irritam um pouco. Dei os parabéns, que sou bem-educado, e me afastei. Superstição tem limites... ou não tem? Talvez o futebol seja o exato domínio em que nossa fé no oculto se liberta. Tudo bem, Diego, eu compreendo seu parafuso a menos.

Ele, a esta hora, deve estar adormecido, com a cabeça sobre o tampo de sua mesa. Mas é merecido. Ele dorme o sono dos campeões e dos malucos. E hoje, ele é ambos.

4.6.07

Apresentando um novo blog



Parodiando um autor bastante conhecido...

Extraído do livro de orações de Muhammad Ibn Al Osrevni, poeta árabe do século IX, encontrado em recentes escavações nas proximidades de Tiro:

"Obstinado em busca da perfeita sabedoria, o silencioso viajante encontrou prazer em passar noites ao relento e dias sem água, conduzindo seus pés descalços através do ouro escaldante das areias do deserto. Finalmente, como por um encantamento, sem um sinal de aproximação, a jornada chegou ao fim. Pela primeira vez, o viajante rompeu seu silêncio. Exultou em louvações ao profeta quando se viu diante da montanha azulada, aquela com que sonhara reiteradamente, exatamente como a tinha em sua memória.

"Mais alto do que o alcance de sua vista, o maciço terrificante de pedra e neve furava a linha das nuvens, rasgando os céus para afirmar sua grandeza com a mais perfeita eloqüência. O viajante tinha à frente uma escalada íngreme, por um terreno coberto de limo e espinheiros, entre pedras pontiagudas e estalactites de gelo. Mas seus olhos carregavam um brilho mais intenso do que a lua crescente; ele não hesitou nem por um momento. Não teve nem sequer a necessidade de tomar fôlego. Seu amor pelo desafio e a força de seus sonhos eram maiores do que o espetáculo mais assustador.

"A subida lhe tomou mais sete sóis e sete luas. Suas roupas rasgavam-se nos espinheiros. A pele, em seus braços, suas pernas, seu torso e seu rosto, foi lacerada inúmeras vezes. Ele, no entanto, nada sentiu. Olhava apenas na direção do cimo, que não via, escondido atrás das nuvens carregadas. Mas se olhasse para trás, veria brotarem, do sangue que escorria de suas mágoas, pequenas margaridas, a desenhar a trilha do caminho que percorrera.

"Estava exausto quando assomou ao topo e, pela primeira vez, lançou um olhar rumo à terra. As nuvens se dissiparam imediatamente de sob seus pés. Descortinava-se ao seu olhar a vista de todas as civilizações de um planeta sofrido e efêmero. Como pulgas, viu os homens que construíam suas casas e templos, faziam suas guerras e se entregavam às paixões. Naquele instante, para ele, glória e miséria eram uma e mesma realidade: aquela que pertence ao homem, o ser contingente e mortal, mas que se redime ao dançar e cantar em louvor a seus deuses. De todas as raças, de tantos povos, somente ele tivera a humildade e a coragem necessárias para atingir o cume da montanha. Sempre humilde, o viajante deu glórias a Alá e seu profeta.

"Já o esperava, aquele que ele tanto queria encontrar, o sábio por cujos ensinamentos abdicara de todas suas posses, abandonara suas mulheres e filhos e se pusera em marcha. Era o mais sereno de todos os rostos, e o mais belo. Suas vestes eram as mais alvas, e as mais lisas. Sentado sobre uma pedra no ponto mais alto da Terra, oferecia ao viajante silencioso o mais plácido dos olhares, e o mais profundo, cuja firmeza fazia, por si só, o mais verdadeiro de todos os discursos. Maravilhado, o viajante permaneceu silencioso. Mas o sábio, sorrindo, falou, na mais doce das vozes, e na mais agradável.

- Tu me conheces?
- Vejo-vos há anos em meus sonhos, respondeu o viajante, trêmulo e exultante.
- Bem o sei, honrado viajante. Sabes pronunciar meu nome?
- Grande mestre, tenho impressa na memória apenas a imagem augusta de vossa face, tão bela e sábia quanto a vejo agora. Mas jamais ouvi vosso nome, para minha enorme vergonha.
- Jamais deve envergonhar-se uma alma tão bela quanto a tua, viajante. Meu nome só pode ser pronunciado por quem já esteve diante de mim, como te encontras neste instante. Agraciar-te-ei com o nome que carrego há mais gerações do que terá qualquer dinastia dos homens. Bravo guerreiro, eu sou O Lunático. Pronuncia agora meu nome, sem temor ou vergonha.
- Sim, sábio mestre. Vós sois O Lunático.
- Vieste perguntar-me algo, já o sei. - E O Lunático afagou os cabelos do viajante. A paz tomou conta de sua alma, como jamais lhe ocorrera até então. - Pergunta agora; em seguida à minha resposta, desce alegremente de volta aos teus, medita e vive em paz.
- Sim, mestre. A pergunta que vos queria apresentar, reconheço, é tola para uma sabedoria como a vossa, que transcende os limites da razão mortal. Mas ousarei perguntar, porque me concedestes essa honra: o que devo fazer, ó Lunático, quando já não sou capaz de dar conta de minhas obrigações?
- Homem de boa fé! Não há nada de tolo no que queres saber. Bendito é aquele que se aflige com um tal dilema! Escuta o que tenho a contar-te:

'Na mais bela pradaria do Oriente, um barqueiro ajudava os pastores, com seus rebanhos das mais luminosas ovelhas, a atravessar um rio de águas cristalinas e frescas. Um dia, veio ter com o barqueiro, já idoso, um belo pastor de cabelos anelados, tangendo o maior rebanho que já atravessou um campo deste planeta. O menino, às lágrimas, pediu-lhe ajuda; explicou que o dono das ovelhas exigia a presença de seus animais de volta à fazenda ao cair do sol. Mas o rapaz, encantado com uma bela lavadeira que encontrara na beira do rio, esquecera-se do tempo, perdido de amor. Temia, então, as chicotadas do fazendeiro, homem severo e cruel. Dizia: 'estou perdido, barqueiro! Tende piedade de mim!' A bela história de amor comoveu o coração doce do barqueiro. Sem um instante de hesitação, ele tomou o cajado e, com um breve golpe, partiu em dois seu próprio barco. Isso feito, conseguiu transportar o pastor com seus animais. Pleno de gratidão, o menino o presenteou com o mais belo cordeiro que jamais pastou sobre os campos.'

"Tendo falado, o Lunático retomou sua posição sentada e cerrou os olhos. O viajante, novamente em silêncio, desceu todo o caminho que subira anteriormente. Mas a volta foi alegre e fácil; a alma do viajante estava leve e iluminada por toda a sabedoria que recebera. Em pouco tempo, estava de volta à sua Damasco natal, onde (...)"

O manuscrito, já irreversivelmente deteriorado, se interrompe nesse ponto. Mas o essencial da narrativa está resguardado. Felizmente. Foi quando conheci esse conteúdo, de espiritualidade inquestionável, que tomei a importante decisão que ora comunico:

Já assoberbado por minhas obrigações mundanas e com dificuldade em manter a constância deste "Para ler sem olhar", resolvi abrir um novo blog: o Cálculo Renal (www.breviario.org/calculorenal). Ele é parte de um novo coletivo, o Breviário (www.breviario.org). Cheio de gente boa, vale a pena visitá-lo. Quanto a mim, como poderia recusar um convite para ficar ao lado de gente tão capaz? Só se eu fosse um lunático.

Mas não sou; aprendo, pois, com a parábola que O Lunático ofereceu ao nobre viajante silencioso. Repetindo o gesto do barqueiro, parto ao meio o Para Ler Sem Olhar. Ficam deste lado os textos leves e que se querem agradáveis; os comentários de viagem, as anedotas e os elogios à primavera (que, falando nisso, não tem merecido elogios). Do lado de lá, no blog inverso, publicarei tudo de abstruso que meus parafusos a menos derem de conceber.

Este texto é, claro, um convite para que conheçam o Cálculo Renal. Por enquanto, ele ainda está praticamente vazio. Mas isso não deve durar muito tempo; as atualizações começarão em breve. Aos interessados, sugiro que regulem seus feeds e me façam uma visita por lá.

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