O homem sem idioma

Consta nos anais que milhares de portugueses deixaram, em torno dos anos 1970, seu país, às voltas com guerras coloniais na África e uma ditadura agonizante em casa. Deslocados de suas casas, os briosos lusos tomaram o rumo da França, como em outros tempos voltavam-se para o Brasil. Esse período talvez coincida com o momento em que ficou definitivamente claro para nossos patrícios que sua ex-colônia americana há muito deixara de ser o tal país do futuro, conforme a lenda, para tornar-se o desperdício cultural e econômico de proporções épicas que tão bem conhecemos. Mas não é o caso aqui de fazer críticas ao nosso Brasil, de auto-estima já tão baqueada.
Fato é que os emigrados portugueses fizeram da capital da França a segunda cidade de maior população lusa, atrás apenas da velha Lisboa das sete colinas. Como sói acontecer em toda saga de migrações, alguns desses bravos que foram buscar uma nova vida conseguiram enriquecer, outros não. E como em toda história desse gênero, o segundo grupo é muito maior que o primeiro. Dentre os que enriqueceram, há donos de transportadoras, redes de supermercado, pedreiras. Cá ao lado de minha casa há um restaurante muito simpático de propriedade de um alfacinha (que é o apelido dos lisboetas, fui descobrir) chamado José Luiz - ou Zé, como prefere. Não é rico como alguns de seus patrícios, mas é um empresário muito orgulhoso que se apraz em receber conterrâneos e demais lusófonos em seu estabelecimento.
Fazem parte do segundo grupo todos, ou praticamente todos, os zeladores dos edifícios da cidade, aqui chamados de
O prédio em que moro não foge à regra. Cuida de manter a ordem no edifício um casal já de certa idade: um senhor sorridente e sua esposa devota. Senhor e senhora M., chamam-se, segundo o costume francês, pois aqui jamais se usa o primeiro nome, a não ser entre amigos. Seu M. fez uma festa ao ser informado de que chegara um brasileiro à vizinhança. Veio ter comigo e deu-me os parabéns. Retruquei-lhe que não fiz grande esforço para obter essa nacionalidade, apenas aconteceu, foi um acaso geográfico. É claro que me orgulho do meu país, ou ao menos da sua parte boa, que de sublime compensa nossa tragédia quotidiana. A simpatia que nossa pátria suscita nos estrangeiros (não apenas nos portugueses; todo mundo gosta de nós, menos os argentinos) é tanta que a nacionalidade virou motivo de congratulações. Que bom, pior seria o inverso.
Mais que sorridente, seu M. é um espécime fabuloso. É ele o homem que dá o título a este texto. Seu francês é sofrível. Expressa-se com dificuldade, pois transferiu-se para a França numa idade em que o aprendizado de línguas já não é tão automático como na juventude, e transferido jamais teve tempo de estudar o idioma. Mais precisava dedicar-se ao trabalho. Porém, as três décadas em que está fora de seu país natal foram suficientes para lhe tornar penoso o emprego do português de seus pais. Contra tudo que jamais me explicaram sobre neurolingüística, M. tem dificuldade em formular frases no idioma que aprendeu na infância, perdeu grande parte de seu vocabulário básico e fala com um carregado sotaque francês - mesmo que essa língua tampouco esteja inteiramente em seu poder.
M. tem conhecimentos de dois idiomas, mas não é natural em nenhum dos dois. M. é um homem sem idioma. Eu creria isso impossível: não é. M. vive perfeitamente, tem sua casa, sua esposa, filhos que já foram constituir suas próprias famílias em outros apartamentos, talvez na França, talvez em Portugal, talvez alhures. No entanto, como se comunica com a família o homem sem idioma? Como explicou ele aos filhos as noções fundamentais da vida, a ética, a higiene, a educação, a ambição? Que palavras usa o homem sem idioma para conversar com a esposa após o jantar? Como se desenvolve seu pensamento quando, nas tardes de domingo, passeia pelas calçadas a fumar seu cachimbo?
Minha pátria, disse Fernando Pessoa, é minha língua. Caetano Veloso adora citar essa máxima. Qual é, pois, a pátria do homem sem idioma? M. é português, vive na França, possui a cidadania e talvez um passaporte europeu. Mas será ele um apátrida? Senão do ponto de vista jurídico, ao menos do lingüístico? Mais importante: M. sente falta de uma pátria?
Os assuntos do idioma não interessam apenas a lingüistas, jornalistas, poetas e críticos. É uma questão filosófica fundamental, sobretudo a partir das últimas décadas do século retrasado. A língua, dirá um Wittgenstein, é o cerne da nossa compreensão do mundo. Como toda percepção, é um código; mas é o código dos códigos, aquele que permite ao sujeito transformar o turbilhão de sensações recebidas do entorno em um sistema coerente e compreensível que lhe permita tomar decisões racionais e se relacionar com seus semelhantes. A frase é confusa, mas significa basicamente que, sem um idioma bem dominado, é difícil dar sentido à realidade.
Como fica M. nessa história? Se por um lado é verdade que ele nunca mais dominará uma língua ao ponto de passar ao grupo dos imigrantes enriquecidos, por outro não é menos certo que ele consegue realizar suas tarefas sem grandes dificuldades. Criou os filhos, administra um prédio, toca sua vida. Passa avisos aos moradores e instruções aos prestadores de serviços. Religioso, M. ora regularmente. Mas em qual língua?
Que falta lhe faz a fluência das palavras? O homem sem idioma é um personagem fascinante. Para mim, pelo menos. Às vezes acompanho pela janela enquanto ele rega as plantas ou mantém suas conversas algo confusas com pessoas que passam pela rua. É um bom homem, todos simpatizam com ele na vizinhança. Não sei se alguém mais se preocupa com o fato de que esse bom homem não tem idioma. Duvido. Sei que ele não dá importância: normalmente, está longe de ser um empecilho para qualquer coisa em sua vida. A não ser quando vem falar comigo ou minha mulher: não entendemos seu francês, nem ele nosso português. Fora isso, parece-me que eu estou mais preocupado com sua capacidade lingüística do que ele próprio.