Silêncio em Rondonópolis

A programação regular se interrompe; invade a tela uma vinheta que anuncia notícias de última hora. Para minha surpresa, é coisa do Brasil e, portanto, me interessa. Mas, como sói acontecer com notícias vindas do Brasil, é problema. Durante um treinamento policial, informa a voz inabalável da jornalista, um menino de 13 anos foi atingido na cabeça por uma bala de revólver, e morreu na hora, claro, diante de vários de seus colegas.
Chocado, corri para procurar a informação na internet brasileira. Não posso negar que encontrei menções em todas as principais fontes de notícias, O Globo, Folha, Estadão, JB e assim por diante. Mas em nenhuma delas, curiosamente, nem mesmo na barafunda do UOL, o acontecido mereceu a primeira página (isto é, a página inicial). A pequena tragédia - pequena, bem entendido, para quem não está envolvido - mereceu da televisão de um país distante a interrupção de um programa. Mas no próprio Brasil, seu verdadeiro palco, o máximo que valeu foi uma nota de rodapé.
É natural, num certo sentido. Com tantos assassinatos intencionais, até gratuitos, por que dar destaque a um acidente? Por que anunciar mais uma criança que perde a vida de forma gratuita, se foi resultado de mera incompetência, não de mais um degrau superado na escalada do barbarismo? A incompetência, afinal, já está perfeitamente documentada; há tempos deixou de ser notícia. Ora, (direis,) se estamos em semana de final de Copa do Brasil! Há mais o que se noticiar, certo?
Mas acho que ainda há algo a comentar. Em primeiro lugar, é evidente que o treinamento que resultou no acidente já estava sendo mal conduzido. Era uma simulação de seqüestro com reféns para policiais militares em Rondonópolis, Mato Grosso. Em que pese o uso já pouco sensato de crianças nesse gênero de trabalho, o acidente só aconteceu porque, em algum momento, uma arma esteve apontada na direção da cabeça de um refém, e o gatilho foi puxado. Numa triste coincidência, aquelas balas não eram de festim, como se supunha.
Acontece que o tal treinamento era, também, uma demonstração, e teve lugar durante uma festividade local. Demonstração de seqüestro durante uma festa? A mim, isso soa terrivelmente estranho. Será que nossa população chegou ao nível de tirar prazer de um espetáculo de violência? Fingida, é verdade; mas violência, mesmo assim. A platéia estava disposta a aplaudir os bravos soldados, quando aniquilassem os falsos bandidos?
Isso ainda não é nada. Do mais terrível, só fui saber dois dias mais tarde. Os sete policiais envolvidos, afastados e presos, resolveram adotar uma estratégia questionável para embaralhar o inquérito. Questionável e pouco inteligente. Em conjunto, negaram que houvesse um revólver com munição verdadeira. Todos, segundo eles, tinham balas de festim, como manda o figurino.
Negar os fatos é o tipo de coisa que só acontece no Brasil. E se acontece, deve ser porque funciona. Todas as armas foram recolhidas, espera-se. Estão em posse da Justiça. Verificar qual delas tem balas verdadeiras é a coisa mais fácil do mundo, e talvez sejam todas. Em tese, negar que alguém tenha cometido um erro é inútil e, pior ainda, um agravante. Uma tentativa (estúpida, é verdade) de bloquear o trabalho da Justiça. Mesmo assim, é um recurso de que os acusados lançam mão com uma freqüência notável em nosso país.
A idéia é atrasar, o máximo possível, o inquérito e um eventual julgamento. Esfriar as coisas, como se diz, até que o caso seja esquecido, arquivado e, de uma certa forma tipicamente brasileira, perdoado. Reintegram-se os policiais e tudo volta ao normal, salvo para a família do garoto sacrificado.
Policiais e bombeiros, em tese, são os heróis da vida contemporânea, urbana e violenta. Seu assunto é nossa segurança. São profissões para quem está disposto a arriscar a vida pelos outros. Em tese, como parece que tudo na vida é "em tese", têm uma posição central na sociedade. Mas são humanos, cometem enganos; uma vez que lidam com armas e outros materiais delicados e perigosos, seus erros podem ter conseqüências funestas, como aconteceu em Rondonópolis.
Pelo menos um dos envolvidos, negligente e leviano, se confundiu; carregou sua arma com munição normal, em vez das balas de festim programadas. É um erro. Estúpido, admitamos. Mas é vergonhoso que alguém que recebe treinamento militar seja covarde a ponto de negar o erro, sobretudo quando é tão evidente. Mais vergonhoso ainda é que os sete, dos quais seis, espero, não cometeram o erro, se unam para bagunçar um caso que, desde o começo, já era suficientemente problemático.
Posso até louvar o senso de companheirismo dos sujeitos, mas é inaceitável a união, em nome da covardia, de profissionais investidos de uma enorme confiança da sociedade. Se nem mesmo nossos policiais, treinados para o heroísmo, conseguem ter brios, quem o terá? Se eles se juntam para abafar um caso desses, evidente e simples, vão deixar de se unir por motivos mais sérios?
É por isso que não posso estranhar a falta de destaque nos jornais brasileiros. Já não se espera, mesmo, nada de positivo das nossas instituições. Todas elas. O erro de um policial não significa grande coisa. A covardia, menos ainda. Que as forças da Justiça servem para garantir tudo, menos justiça, já é assunto para embrulhar peixe na feira. Não se pode querer chamar a atenção do leitor brasileiro acompanhando um caso desses. Para que atitudes condenáveis da polícia recebam destaque, precisam ser muito mais graves do que isso.