À casa torno

Me preparando para embarcar rumo ao Brasil. O pensamentos em direções dispersas, disparado, partido entre deixar uma certa ordem na vida para as duas semanas de ausência e a organização da corrida febril que deveria ser descanso. Doze dias entre os meus, doze vezes doze pessoas a rever e abraçar, doze mil papos a colocar em dia.
E quantos dias! Mais de quinze meses afastado do chão em que se construiu minha história. Apartado de uma forma de viver, bem específica, que corre em meu sangue. Entre gentes que me sabem forasteiro, no esforço para minorar as diferenças. Obrigando-me a adaptar o comportamento. Ainda sou o mesmo, eu me reconheço assim. Mas, tão pouco tempo passado, já não sou bem igual, não é só fachada. As roupas que uso, jamais usaria em minha terra. A indumentária que aqui é corriqueira, é exótica aí, e não mais me incomoda parecer exótico aos olhos dos meus conaturais.
E mais, algo bem pior, que o espelho denuncia: tenho a tez de uma assombração. Minha palidez, digno atestado do continente em que vivo, talvez ofenda as sensibilidades nacionais. Não é exagero meu. Um raio de sol brasileiro, refletido em minha testa, arrisca ofuscar os motoristas. Que perigo, posso causar um desastre. Assim, entre as visitas, as questões burocráticas e as tulipas de chope, cumpre encaixar o compromisso diário com a praia ou, na falta dela, uma piscina, uma laje, qualquer coisa exposta ao mormaço.
Pensamentos bestas! Quando eu deveria estar concentrado nos horários dos médicos, nas cidades a conciliar, na pausa forçada que vai me impor o carnaval! Sim, reitero, a folia é pausa forçada. Mas nem por isso é menos bem-vinda. É hora de mapear os blocos e as rodas de choro, bela oportunidade de ouvir ao vivo a música que só tenho recebido pelos próprios discos. Ora, eu, que deveria me preocupar com minha agenda, só tenho cabeça para ouvir chorinho.
Será estranho, se eu sair do aeroporto e um taxista me abordar num arremedo de inglês. Vou pensar que ninguém quer falar comigo na minha língua, nem mesmo no meu próprio país. Talvez eu ria, talvez eu rosne. Vamos ver. Nada de levantar hipóteses à toa. Ser confundido com um turista sem rumo já me aconteceu, e não é das melhores experiências, sobretudo no Brasil. Mas meu humor pode estar tão bom que eu engate uma longa conversa sobre the book that is on the table.
Já veio me dizer um amigo que, sem dúvida, de um jeito ou de outro, vai ser estranho. Nas primeiras horas, o habitual de outrora tem cara de novidade. As reações não se dão naturalmente. Você tem plena consciência de que já chegou, mas a melodia, o jogo de corpo, a postura displicente, que antes não renderiam um mínimo relance de atenção, renascem como elementos de estudo antropológico. Foi o que aconteceu com ele, garante.
Diz esse amigo que, ao carregar com mais freqüência o passaporte do que o CPF, você é introduzido num certo limbo. Não é nativo de verdade, nem muito menos gringo. Essa mutilação radical das raízes me parece fantasiosa, mas, ele afirma, pode até ser vantagem. Com um pouco de boa vontade, você se transforma em observador privilegiado de ambos os campos: morador que aprende, visitante que conhece.
A perspectiva é auspiciosa, mas tensa. Eu não me sinto confortável com a oportunidade, tão próxima, de colocá-la à prova. A chegada do descanso empolga a fadiga das minhas mandíbulas e têmporas. A hora da viagem traz à tona meu lado prático, de hábito atrofiado e subnutrido, mas nem por isso ausente. A perspectiva dos almoços em família potencializa uma saudade que interfere no bom raciocínio. Essa vibração interna suplanta com sobras a apreensão quanto ao reencontro com o país. Não sei o que vou pensar ou sentir. Por si só, isso já será uma surpresa.
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