Aviso desde já que esta postagem, cujo título é uma aliteração tão cretina, não fala de belezas, nem alegrias. Quem estiver interessado em flores e primavera, peço que tenha a gentileza de descer até o próximo texto; ali, garanto que encontrará o que procura. Este aqui, confesso, é chato, denso, comprido (aliás interminável) e, finalmente, muito teórico para um blog (como dizem). Tento ao máximo evitar esse tipo de abordagem neste espaço porque, se já é difícil acompanhar os textos como eles são, imagine se houver uma argumentação intrincada. Mas acontece que o assunto me chamou a atenção; não tenho como deixá-lo passar.
Soube pelo blog
Contemporânea e pelo
Jornal da Ciência que o STF convocou 17 pesquisadores para debater "quando a vida começa", antes de votar uma ação de inconstitucionalidade que exige a proibição da pesquisa com células-tronco embrionárias que não foram usadas para a inseminação artificial. Para quem não se lembra, as pesquisas foram autorizadas por uma votação parlamentar, há dois anos, com atuação decisiva de Ana Cristina Cavalcanti, filha do Severino que foi um dos mais folclóricos presidentes da nossa Câmara.
.
A iniciativa não deixa de ser louvável; pesquisas com células-tronco são um dos campos mais avançados e promissores da ciência. Podem fornecer a cura de uma infinidade de doenças e a resposta para algumas das questões mais antigas sobre a vida humana. Ao mesmo tempo, é um assunto controverso. Se os embriões a pesquisar forem considerados indivíduos, usá-los como cobaias ferirá o mais básico princípio ético da modernidade, isto é, a sacralidade da vida humana, sua inalienabilidade e soberania.
Está longe de ser um problema simples, e o Tribunal tem toda razão em consultar especialistas antes de se decidir. Proibir as pesquisas pode colocar o Brasil ainda mais para trás em termos de desenvolvimento tecnológico, mas não há corrida científica que justifique tratar o ser humano com leviandade. Há quem proponha um plebiscito, mas essa não seria uma solução adequada. Plebiscito algum pode ter a legitimidade de autorizar o assassinato.
Mesmo assim, vou dar uma de chato e fazer uma crítica. A questão está colocada de uma maneira fundamentalmente errada, que foge ao ponto e mostra o quanto a filosofia, tão criticada e considerada inútil por muita gente boa, pode fazer falta. E não é uma questão qualquer. Envolve igualmente a problemática do aborto. Depende dessa decisão jurídica o ponto em que a interrupção da gravidez será aceitável. No limite, até mesmo a pílula do dia seguinte está em risco, se ficar "constatado" que a vida "começa" no próprio ato da concepção.
"Onde começa a vida?", pergunta o STF. Ora, não se trata em absoluto de descobrir onde a vida começa. Uma criança é produto de dois adultos vivos; o espermatozóide é uma célula viva, o óvulo também. Depois da concepção, o resultado do encontro desses dois corpúsculos vivos resulta em uma célula viva, que se divide em duas, depois quatro, depois oito. Em breve, temos um embrião: vivo. Mais tarde, um feto vivo, um bebê vivo e, finalmente, uma pessoa com nome, CPF e dívidas a pagar.
Onde começa a vida? Colocada assim, a pergunta só tem uma resposta possível: a vida começou na Terra há 4 bilhões de anos. Desde então, jamais deixou de existir e, ainda por cima, há teorias para as quais ela veio de outro mundo, na cauda de um cometa, e seria, portanto, muito mais antiga. Mas essa resposta é um pouco infantil, não ajuda nossos juízes, em Brasília, a decidir se as pesquisas com células-tronco devem ser proibidas ou não.
Mas, tudo bem, pelo menos já avançamos um pouco. Em vez de perguntar "quando começa a vida", poderíamos mudar para "quando começa uma vida". Parece uma mudança boba, coisa de gente chata, que se perde em discussões semânticas estéreis. Mas a diferença é fundamental. Quando falamos em "uma vida", a referência imediata que fazemos é a um indivíduo, naturalmente. A questão, portanto, torna-se "Como podemos determinar o início de um indivíduo?" ou, mais precisamente, "Quais são os limites cronológicos de um indivíduo?" e, finalmente, acima de todos esses questionamentos, o mais fundamental de todos: "Que raios é, afinal de contas, um indivíduo?"
Pois essa questão, infelizmente, não tem resposta. O indivíduo é um tema recorrente na filosofia desde seu berço grego, e não deixou de sê-lo jamais. Foi discutido por gente de calibre, como Leibniz, Sto. Agostinho, Descartes, Sartre e, enfim, quase todo mundo. A idéia do que seja um indivíduo, qual seu valor, de onde vem, para onde vai, e assim por diante, sofreu uma infinidade de mudanças desde que se começou a pensar. Até hoje, não temos resposta. Voltaremos a isso, se você tiver paciência de continuar lendo.
Como vimos, a questão, aparentemente simples, que o STF pretende discutir com seus 17 sábios é, na realidade, infinitamente complexa e profundamente filosófica. Entretanto, de todos esses especialistas chamados, não há um, nenhum, zero, que seja filósofo. Pelo menos, não na vida profissional. Há médicos, geneticistas, farmacêuticos, advogados, antropólogos. No dia 20 de abril, estarão sentados diante dos ministros do Supremo para responder a uma questão filosófica irrespondível.
É evidente que, com esse time, a abordagem será eminentemente prática. Isto é, vão tentar encontrar um critério aceitável para determinar um ponto a partir do qual se declarará que aquele agrupamento de células que foram concebidas no útero da mulher é, juridicamente, a pessoa que será depois que nascer (se nascer). Lamento informar que o critério, por mais sérios e especializados que sejam os cientistas, será aleatório. Se não for aleatório, será determinado por convicções pessoais dos sábios... e dos ministros. Voltaremos a essa questão mais tarde, também.
Quais são os postulantes a "momento M" de começo de uma vida? Os religiosos mais radicais já determinaram: é no exato momento em que o espermatozóide atinge o óvulo. Condenam, assim, a famosa pílula do dia seguinte, como assassina. Outros podem dizer que é a partir da fixação do embrião na parede do útero. Até então, pode ser apenas um aborto natural, se é que essa palavra pode ser usada.
Desculpe, corrijo-me: falei em religiosos mais radicais, mas existem alguns ainda mais radicais, que chegam ao ponto de condenar a masturbação com base no argumento de que o esperma ejaculado já contém "vidas". Mas isso não é assunto para este texto.
Os geneticistas poderão dizer que o indivíduo se torna independente no instante em que as duas metades de código genético, do pai e da mãe, se misturam e formam um só. É o código daquela pessoa em formação. Para um materialista genético contemporâneo, isso é o indivíduo. Mas nem todo mundo é materialista genético contemporâneo, claro. Um outro geneticista, mais interessado nas pesquisas com células-tronco, dirá que só há, propriamente, um indivíduo quando as células se diferenciam em suas funções específicas. Outro, ainda mais mecanicista e, cá entre nós, bastante romântico, argumentará que, enquanto não há coração batendo, o feto é apenas um corpo estranho no ventre da mãe.
Já uma feminista radical, querendo ampliar o prazo para a realização de um aborto, se ele for legalizado, naturalmente, dirá que esse corpo estranho continuará não sendo mais do que isso até o momento em que ele aja por si próprio, ou seja, chute a barriga da mãe, trema ao escutar a voz do pai e assim por diante. Isso só acontece quando se desenvolvem os primeiros neurônios do cérebro.
A brincadeira pode estar chata para o leitor, mas para mim é divertidíssima. Vou continuar radicalizando. O que impede alguém de afirmar que só há, de fato, uma pessoa a partir do nascimento mesmo? Nada. Não faz muito tempo, bebês nascidos mortos eram simplesmente jogados fora. Não na lixeira, claro. Eles eram enterrados como pedaços de carne, não como gente falecida. Por quê? Muito simplesmente porque, segundo algumas leituras da tradição católica, a pessoa só passa a existir depois do batismo. É uma leitura extrema, bem sei. Mas é engraçado que, hoje, sejam justamente os religiosos que procurem antecipar ao máximo o surgimento do indivíduo sagrado, inalienável, soberano.
Ainda mais um pouco: Para algumas tradições, é um indivíduo aquilo que se pode nomear. Um boi, no meio da boiada, não é um indivíduo, mas aquele bezerro que um pai dá de presente à sua filha, que ganha o nome do cachorro morto no ano anterior, cresce no meio da família e todos amam, eis um indivíduo. Tente mandar esse boi para o abatedouro. Observe a reação da família. Desse ponto de vista, o bebê é gente quando lhe indicam um nome. Fácil, não? Os pais só não podem demorar demais, senão acaba nascendo nada mais do que um bicho selvagem...
Finalmente, a radicalização final. A idéia de indivíduo que temos hoje é fruto da revolução burguesa e, principalmente, do Iluminismo. Para nós, parece intrínseca à nossa humanidade, mas não é. Para muitas formações sociais, o bebê que nasce não é um indivíduo, de fato... nunca. O exemplo radical está em Esparta, essa curiosa cidade grega que vive atualmente seus quinze minutos de fama entre os adolescentes. Quem nascia, nascia para o Estado. Só poderia sobreviver até a idade adulta se estivesse dentro dos padrões do Estado e fim de papo. Caso contrário, morreria no caminho, e não haveria quem chorasse por ele.
O mesmo ideal se encontra em Platão, com um ponto de vista menos violento, mas próximo. Escravos, nem em Roma, nem no Brasil, eram indivíduos. Nas sociedades aristocráticas, leia-se Europa, apenas os nobres o eram verdadeiramente, até que os burgueses enriqueceram e exigiram seu lugar ao sol. A chamada "massa" só obteve seu reconhecimento individual graças a algumas cadeiradas, a partir do século XIX. No século XX, finalmente, temos mais de uma experiência de aniquilação do indivíduo, em Estados totalitários para os quais cada pessoa não era senão uma engrenagem.
Isso não quer dizer - caro leitor resistente que não interrompeu a leitura até aqui - que no século XXI o indivíduo seja uma entidade plenamente garantida. As idéias democráticas da liberdade individual acabaram resultando num individualismo tão exacerbado que anulam o próprio indivíduo. No meio da multidão, a dificuldade em se diferenciar leva as pessoas a atitudes as mais idiotas. Entre no orkut e veja quantos perfis estão preocupados, desesperadamente, em afirmar a individualidade do titular daquela página (entre tantas outras iguais). Mas, se cada "eu" se desdobra em e-mail, orkut, MSN, Second Life e o raio que o parta, onde está o indivíduo, de fato? Em breve, teremos que nos colocar a questão. Se roubarem minha senha e postarem no meu lugar, quem serei "eu"? Se eu morrer e meus amigos continuarem postando com meu nome, quem sou "eu"?
O assunto é fascinante para quem gosta. Pouca gente, claro. Em jogo, uma série de outras dimensões muito complexas; sou um indivíduo por inteiro, ou cada parte de mim também é uma manifestação individual de mim? Meu indivíduo está só em meu corpo, só em meu pensamento, numa estranha mistura de ambos? E assim por diante. Ao final, a pergunta conduz a becos sem saída, como a existência da alma; se essa alma é imortal; se ela já existia antes de mim. Entra-se no campo de conceitos como essência, substância, contingência. E onde é que se sai?
É por isso que a ausência de filósofos no debate do STF não chega a me surpreender. Os ministros precisam de um critério simples, claro, direto e, principalmente, prático. Se houvesse, porém, um mísero calouro de filosofia que fosse, mesmo o maior dos néscios na área, uma barreira sólida seria atingida. Essa barreira é como segue.
É impossível a um Estado laico proibir legitimamente as pesquisas com células-tronco, com base em critérios indubitáveis. Com base na dúvida, talvez. Mas um dos princípios do Estado democrático de direito é a permissão em casos de dúvida. Com um pouco mais de polêmica, o mesmo é válido para o aborto.
Qual será, então, o critério de escolha dos ministros? Ora, será o mesmo de sempre. Um equilíbrio incerto entre as inclinações de opinião de cada envolvido e as pressões exercidas por grupos sociais. E os grupos que exercem mais pressão, como sabemos, são ligados a Igrejas. Por sinal, a convocação dos 17 cientistas, idéia do ministro Carlos Ayres Britto, tem como motivo o julgamento de uma ação de inconstitucionalidade movida por um ex-procurador geral da República, Claudio Fonteles, ligado à Igreja Católica.
Tudo isso só complica mais ainda a questão. Primeiro, temos uma discussão filosófica levada a termo sem a presença de filósofos, a partir de uma pergunta mal formulada. Em seguida, temos um Estado laico constantemente ameaçado por grupos religiosos. Finalmente, esses mesmos grupos religiosos, ao se imiscuírem em assuntos de Estado, ou seja, seculares, rompem com uma das lições mais importantes do Novo Testamento, um princípio fundamental, que é uma das maiores diferenças entre a Bíblia e, por exemplo, o Corão: "A César o que é de César, a Deus o que é de Deus". Do ponto de vista dessa frase do próprio Cristo, um grupo religioso que se mete em assuntos de Estado está, pura e simplesmente, pecando.
Agradeço a você, único leitor que chegou ao último parágrafo, mesmo sabendo que nada disso vai mudar sua vida diretamente. Você é um bravo. Um monte de parágrafos, tempo perdido na leitura, e a questão não está resolvida. Pelo menos, conhecemos melhor o que está em jogo, não? Ao STF, deixo um pedido: ao discutir questões conceituais, chame aqueles cujo trabalho está voltado especificamente para os conceitos. Chame filósofos. Torna as coisas mais complicadas, mas menos vagas.