28.4.07

Contra a barbárie, a arte

Na última semana, quando passei parte considerável de uma manhã diante do imenso - e assustador - painel que Pablo Picasso pintou para carpir as vítimas do bombardeio de Guernica, em 1937, não sabia que esse evento tão covarde completaria seu septuagésimo aniversário poucos dias mais tarde. Pois foi anteontem, 26 de abril. A coincidência é tão evidente que não posso evitar de deixar um comentário, mesmo se o conceito de "gancho" me causa arrepios.

Não há muito o que acrescentar ao que foi dito do evento em si. Todos sabemos que a Luftwaffe de Hitler e os teco-tecos de Mussolini aproveitaram a ocasião para calibrar suas metralhadoras, bombas e canhões. Tampouco é segredo que tudo se fez com a anuência das potências democráticas ocidentais, capitaneadas pela incompetência do britânico Neville Chamberlain e o flerte descarado da república francesa com os totalitarismos. (Foi o primeiro país a reconhecer o regime de Francisco Franco. Logo que Madrid caiu, enviou-se à capital espanhola, a título de embaixador, o marechal Pétain: aquele mesmo, o de Vichy.)

O bombardeio de Guernica, um vilarejo de 5000 habitantes no país basco espanhol, é talvez a maior vergonha da cultura ocidental. Primeiro ataque massivo a uma população inteiramente civil, deu-se intencionalmente numa segunda-feira, dia de mercado. Imagine as ruas cheias de camponeses vindos das montanhas. Feirantes apregoando, crianças roubando frutas, mulheres de véus negros a pechinchar. Tudo em euskera, claro; tudo muito barulhento, alegre, festivo. De repente, o apocalipse que se abate, anunciado pelas sirenes dos Stuka. Fala-se em algo entre 200 e 2000 mortos, sacrificados num teste do poder de fogo fascista.

Resta, então, falar da obra-prima, de sua disposição no museu, da instituição em si. Esses três itens formam praticamente um único tema. O Centro de Arte Reina Sofía é um museu extraordinário. Menos badalado, é verdade, do que seu vizinho, o museu do Prado (que Picasso dirigia em 1937, por sinal). Mas até, se bobear, mais interessante. Acolhe obras principalmente do século XX, como Salvador Dalí, Joan Miró, o próprio Picasso, Juan Gris, Fernand Léger e assim por diante, bem organizadas no edifício de um antigo hospital do século XVIII. Recentemente, ganhou uma extensão assinada por Jean Nouvel que, ao contrário do que costuma acontecer, não descaracteriza, nem estorva o conjunto.

Dentro, Guernica tem posição privilegiada. O mural ocupa uma parede inteira, mas a ele são dedicadas três salas, que lançam luz sobre seu processo de criação e os diferentes esboços, projetos e percalços por que o artista passou antes de se decidir pela forma definitiva. Os textos-parede são claros, e todo o conjunto realça a grandiosidade de uma das maiores realizações artísticas da história. Para efeito de comparação, basta tomarmos o exemplos de outra obra-prima: a Gioconda de Leonardo, emparedada no Louvre, separada do público por uma placa de vidro tão grossa que distorce a imagem. A multidão, circulando no exíguo espaço deixado pelas cordas de isolamento, pouco ajuda, com suas metralhadoras fotográficas, nervosas como as da Wehrmacht. É impossível apreciar as qualidades que fizeram da Mona Lisa a pintura mais reproduzida e citada no mundo, principalmente se na mesma sala há tantas obras que tiram nosso fôlego.

Guernica está livre dessa maldição. Vemos, numa seqüência de fotografias tomadas pela companheira do artista na época, Dora Maar, as etapas da elaboração do trabalho. O touro, à esquerda, originalmente mostrado de perfil, terminou contorcendo-se, olhos esbugalhados. O cavalo, que tem a goela escancarada para o céu, inclinava antes o pescoço sobre um homem despedaçado. São incontáveis os estudos para a mãe que carrega entre os braços seu bebê morto. Em alguns, as lágrimas tombam. Em outros, apenas brilham. Ou esguicham. O mesmo vale para todas as personagens, cuidadosamente compostas em separado, antes de integrar a obra definitiva.

Tendemos a nutrir a fama de um Picasso já velho, parisiense, célebre, que podia se dar ao luxo de pagar suas compras com rabiscos feitos in loco, um gênio que criava maravilhas sem grandes planejamentos (c.f. O Mistério Picasso, de Henri Clouzot, 1956). Mas Guernica, sobretudo com o apoio da excelente disposição do Reina Sofía, nos revela o Picasso cuidadoso, apurado, perfeccionista, o único capaz de engendrar as revoluções estéticas que saíram (em parte) de sua sensibilidade.

A história do quadro é interessante por si só. Resulta de uma encomenda do desditoso governo republicano espanhol, para integrar o pavilhão do país na Exposição Universal de 1937, em Paris. Abatido pela guerra que rasgava seu país, o pintor esteve a ponto de declinar, quando chegaram as notícias do bombardeio. Daí por diante, ele se dedicou integralmente ao seu trabalho de protesto e denúncia, mas também esperança, representada na flor que teima em crescer, no centro da composição.

Desde que ficou pronto, Guernica rodou o mundo com sua mensagem contra a barbárie. Após o triunfo do fascismo na Espanha e o início da Segunda Guerra Mundial, com as atrocidades que todos conhecemos, esteve em Oslo, Copenhague, Estocolmo, Londres, Nova York, Los Angeles, Milão, São Paulo, Munique, Amsterdam, Bruxelas, Colônia, Hamburgo... Mais do que a mensagem de Picasso, talvez só tenha viajado o horror que ela procurou denunciar: a guerra. Coréia, Vietnã, vários países africanos, Cambodja, Iugoslávia, Oriente Médio...

A luta do enorme painel contra a barbárie humana terminou em 1981, com sua volta à Espanha. Isso só se deu após a morte do próprio Picasso, em 1973, e de Franco, em 1975. Picasso deixara expressamente a ordem de só permitir o retorno de Guernica, então instalado em Nova York, quando a democracia voltasse a viger em seu país. Nesse ponto, a arte saiu vitoriosa em sua luta contra a guerra. Enquanto esteve sob o jugo franquista, a Espanha foi um país isolado e rejeitado pela comunidade internacional. Hoje, é um dos mais pujantes, admirados e visitados. Guernica, o quadro, tem seu altar na capital do país. Fascismo e nazismo foram derrotados, ainda que com muito sacrifício. Mas a guerra, o horror, o desprezo pela vida humana, todos esses fantasmas continuam a pairar sobre nossas cabeças.

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25.4.07

O terceiro homem

Achei que, de volta ao lar, ouviria perguntas sobre minhas impressões de Madrid, visitas a museus e outras amenidades agradáveis e turísticas. Estava errado. Ninguém quer saber de assuntos leves. Somos um povo sisudo, preocupado apenas com coisas sérias e importantes. Sendo assim, já me perguntaram sobre as eleições francesas, os desdobramentos da questão do indivíduo, a problemática da violência e assim por diante. Acho ótimo, porque me fornece uma reserva de assuntos bastante confortadora. Por outro lado, estava doido para escrever alguma coisa sobre as calles madrileñas.

Tudo bem, deixarei para depois. Há assuntos mais urgentes, que perderão o interesse em pouco tempo. Como as eleições, cujo segundo turno está marcado para daqui a menos de duas semanas, no dia 6 de maio. Vamos atacar essa disputa, então, antes que seja tarde. Madrid continuará no lugar em que sempre esteve: é um lugar alto, nem o aquecimento global pode colocá-lo em risco.

Finalmente, depois de semanas de tensão, ficou decidido que a disputa vai mesmo se dar entre a direita de Sarko(zy) e a esquerda de Ségo(lène). A manchete algo aliviada de um dos jornais, na segunda-feira, foi "A volta da disputa direita-esquerda". É que, em 2002, Jean-Marie Le Pen, encarnação da extrema-direita caquética, acabou chegando ao segundo turno graças à desilusão dos socialistas. Jacques Chirac, um presidente que os franceses tratam com um certo desdém, ganhou mais cinco anos no palácio Champs-Élysées, com a expressiva votação da esquerda assustada.

Mas a volta da polarização eleitoral (vamos dizer assim) não é exatamente como parece. Primeiramente, todos os partidos pequenos tiveram votação menor do que de hábito. Incluindo Le Pen, que, de tão frustrado, chamou os franceses de otários, patos e uma enorme expressão que se pode traduzir por "mulher de malandro". A corrente mais atingida foi a esquerda; fora a própria Royal, praticamente todo o resto sumiu do mapa. Isso parece espantoso na França, país dos protestos e sindicatos, mas... bom, assunto para outro texto.

A novidade mais importante na eleição chama-se "centro", na figura do candidato do partido UDF, François Bayrou. Esse partido era conhecido por ser quase uma marionete da UMP, de direita. Não mais. Em certo momento, parecia que Bayrou chegaria ao segundo turno. Ameaçava ambos os candidatos, mas principalmente Royal, por motivos óbvios. Acredito mesmo que, se chegasse, teria enormes chances de levar a eleição, contra Sarko ou Ségo igualmente. Ambos atraem muita rejeição.

Para grande alívio dos militantes do PS, que não agüentariam ficar de fora mais uma vez, a ameaça não se concretizou. O alívio, aliás, não é uma inferência minha. Está em declarações de quadros do partido e nas fotografias dos jornais. Royal está garantida no segundo turno, mas numa situação difícil. Há três meses, estava empatada nas intenções de voto com Sarkozy. Ao se abrirem as urnas, estava seis pontos atrás. Isso parece pouco, mas os analistas políticos vêem aí um verdadeiro abismo.

Em suma, quem definirá o resultado da eleição será, justamente, Bayrou. Como uma princesa virgem medieval, está sendo cortejado por ambos os lados do espectro político. Seus correligionários fazem a festa: aparecem na televisão atacando a direita, atacando a esquerda, vendendo caro seu pacote de votos. Já o próprio se escondeu em algum chalé dos Alpes e faz suspense (charminho, dirão alguns; doce, dirão outros). Ele sabe que a cabeça em que pousar a mão será abençoada.

Por aqui, todos os profetas e jornalistas ocupam suas páginas e minutos do horário nobre com uma série de perguntas. Em quem votarão seus eleitores? Por que seu partido cresceu tanto? Quem é esse homem? Quem ele apoiará no segundo turno? O que fará com o prestígio que adquiriu, graças aos votos de quase um quinto dos eleitores? O que significa o advento do centro na política francesa?

Não tenho cacife para tentar uma resposta. Mas posso dizer que vejo na figura desses três candidatos uma marca de mediocridade terrível, se comparados aos antigos nomes da política francesa. Sarkozy, Royal e Bayrou dificilmente me passam a sensação de serem estadistas do porte de figuras hipnóticas como Mitterrand, Pompidou ou o próprio De Gaulle (mas isso seria esperar demais).

O direitista, ex-ministro do Interior de Chirac, é um almofadinha que gosta de fazer cara de mau e intrigas palacianas, pensa que governar é adotar estatísticas de desempenho e martela sem parar dados catastróficos sobre segurança. A socialista tem um quê de "Lula de berço dourado", quer dizer, faz planos mirabolantes para o futuro do país, fala em união para governar e outras generalidades, e sempre parece estar sorrindo. E, ao contrário do que acontece com nosso presidente, as gafes que ela deixa escapar são muito mal vistas nesta terra em que o rigor do discurso ainda é o que há de mais importante depois do vinho e do queijo.

Bayrou é, talvez, o mais carismático dos três. Fala com tranqüilidade e responde às questões com uma expressão incrivelmente fria, mesmo quando sua resposta nada tem a ver com o assunto. Ponto para ele. Mas essa frieza freqüentemente se transmuta em aparência de enfado. De vez em quando, ele passa a impressão de que preferiria estar na praia, ou comandando ainda um partido quase insignificante, mas que não dá muito trabalho. No momento em que esteve mais clara a possibilidade de arrancar para uma inesperada vitória, ele parece ter dado um passo atrás, evitado um pouco os holofotes, abdicado do sonho de chegar à presidência. Preguiça? Estratégia? Só o tempo dirá.

A volta do "esquerda X direita" na política francesa deve ser interpretada com um enorme resguardo. Minha interpretação pessoal para o crescimento do centro, e quero crer que minha interpretação não é inteiramente desprovida de estudo, é como segue. As ideologias perderam espaço. Cada vez menos as pessoas se interessam por um projeto político para seu país. Estão muito mais preocupadas com questões corriqueiras, quotidianas. Não a saúde econômica, mas o emprego de amanhã. Não a organização social, mas a criminalidade do bairro. Não a qualidade da educação, da produção acadêmica e científica, mas o diploma de uma faculdade, qualquer uma, para os filhos. Ao contrário do que se pensa, isso não é exclusividade brasileira, embora se torne muito mais grave em países que precisam de um esforço extraordinário para se desenvolver.

Direita e esquerda representam ideologias. Cada uma dessas correntes vê e planeja a nação de uma maneira, e um voto significa quase uma adesão a essa Weltanschauung. Não estou dizendo que o centro represente a ausência de ideologia. Mas, preocupado com seu dia-a-dia, a chamada "vida real", o cidadão comum rejeita toda a estrutura ideológica que dá solidez a um partido. O voto, então, toma duas feições: o protesto, que se manifesta em abstenções e em candidatos alternativos; e o carismático, que ignora todo o discurso e só se preocupa com a imagem que o candidato transmite. Nesse último ponto, as mídias têm um papel fundamental (c.f. Max Weber).

Bayrou calcou sua campanha no slogan "ni, ni", ou seja, "nem direita, nem esquerda". Caiu nas graças da população. Numa analogia enxadrística, era um peão, mas encontrou o caminho para se tornar uma rainha. Agora, resta uma pergunta ainda mais interessante. Haverá, também, eleições parlamentares. Como será o desempenho do partido centrista? Se conseguir a maioria, teremos uma coabitação? E mesmo que não consiga, como ficará o sistema político francês sem uma maioria clara do partido do presidente, e nem da oposição?

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23.4.07

DE NATVRA VACATIONIBVS

Dizem alguns religiosos que Deus descansou no sétimo dia para dar um exemplo à humanidade. Como o Criador, a criatura precisa repousar eventualmente, esquecer um pouco sua realidade quotidiana, recuperar as forças, tomar um tempo para vadiar e admirar as maravilhas da criação. Muito bem. Compreendo que isso funciona muito bem com o Altíssimo; afinal, ele é todo-poderoso e, ao voltar de seu descanso, não tem dificuldade em cumprir todas as eventuais pendências.

Mas para nós, finitos e imperfeitos, a coisa se dá de maneira bem diversa. A não ser que você tenha menos de dez anos de idade, o mundo real simplesmente não considera a hipótese de parar sua marcha ensandecida só porque você tirou uma semaninha de férias. Pelo contrário, parece que todos aqueles que puderem cobrar ou pedir algo de você receberão pelo correio um aviso de que, da noite para o dia, seu estoque de horas livres se multiplicou. Do ponto de vista deles, ao infinito.

Como não poderia deixar de ser, esse detalhe fere um princípio muito caro a você, segundo o qual as horas livres têm essa denominação porque, supostamente, serão livres. Pouco importa. A lógica é um campo que perde facilmente toda sua relevância quando interesses maiores estão em jogo. Todo mundo sabe.

Não se trata de uma maldade coletiva, nada disso. É o próprio balé das ditas "coisas" (e que coisas serão essas, ó raios?!) que não admite o abandono, ainda que temporário, de um de seus bailarinos. No caso, você. Que, não agüentando mais o acúmulo de funções e horários, pediu um momento para retomar o fôlego e deixou de braços cruzados uma infinidade de parceiros. Apenas, seguindo seu destino natural, esses parceiros ficam com as pernas formigando e não o deixam descansar.

Sem querer parecer místico, devo confessar que sou daqueles que reconhecem uma enorme ironia em algumas particularidades inescapáveis da existência. Alguém, ou algo, se diverte muito às nossas custas. Garanto. Mas, como não quero converter ninguém a religião alguma, até muito pelo contrário, prefiro calar sobre esse assunto e aceitar em silêncio as gargalhadas da transcendência.

Chego em casa após uma viagem de menos de uma semana, e já me assusto com as obrigações empilhadas sobre meus ombros, cujos prazos foram, em geral, marcados para os últimos dias. Conformado, saco minha agenda e corto algumas horas que tinha reservado para o sono. Ao contrário do que crêem os médicos, dormir não é assim tão indispensável. Entre o cadafalso e as olheiras, ora, fico com as olheiras.

A todos que me cobraram ou pediram alguma coisa, não se preocupem. Hei de responder, ainda que esgote no processo minha última gota de sangue.

Percebo agora que acabaram-se minhas férias, com que sonhei durante meses e que, apesar dos percalços e das conseqüências aparentemente funestas, valeram muito a pena. Agora, tudo que eu mais quero são, e não podia ser outra coisa, férias.

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15.4.07

Cada língua em seu lugar

Duas semanas de férias são a desculpa perfeita para acumular um passivo de trabalho. Entre artigos e comentários de texto, a dívida já está em 19 folhas cheias de letras. Ainda resta implorar por duas entrevistas e, para amarrar o pacote, atualizar este blog que já vai completando 11 meses (e preparar algumas novidades para o aniversário). Duas semanas? Desconte-se aí uma viagem para Madri. Ninguém é de ferro, muito menos eu. Tanto não sou metálico que mal consigo manter a cabeça inclinada sobre o teclado, enquanto lá fora as tulipas se dão a fotografar e o dia se recusa a escurecer. Parece que não terei grandes resultados ao final da "folga". Para trabalhar, sobram apenas as madrugadas, em que preferiria me enfurnar nas tavernas ou, na falta de dinheiro, debaixo de lençóis.

Se não estou entre os bêbados, nem entre sonhos, estou entre Platão e o blog. Não é difícil concluir qual lado dessa equação fica para trás. Tenho desculpas, claro. A cabeça se embaralha, exausta, dolorida, ao cabo de umas tantas horas redigindo em francês e inglês. Ao falar com amigos, ao escrever em meu querido português, canso de soltar galicismos imperdoáveis. Não é raro que, procurando nos arquivos a melhor palavra para uma frase, brotem apenas expressões estrangeiras. Uma confissão: às vezes, tenho ganas de dar com a cabeça na parede.

Por um lado, temo um pouco acabar como o homem sem idioma. Um receio infundado, espero. Por outro, tenho feito descobertas, e graças a elas tudo isso vale a pena. Como por magia, as línguas, cada uma à sua maneira, começam a ganhar um significado próprio na minha cabeça. É como se existissem para preencher funções diferentes e se usarem em situações específicas. Tenho até a impressão de que não é coisa da minha cabeça. Que é universal e, de fato e de direito, as línguas se adequam a campos que lhes são próprios, frutos de culturas diferentes e histórias particulares.

Confuso? Explico, começando pelo francês. Essa língua tão peculiar é de longe a mais adequada para documentos oficiais. Ora, sendo a língua de Descartes, não tem como não ser cartesiana. Para produzir textos claros, ocupa laudas e laudas, com seus truques e fórmulas estabelecidos, presentes até nas conversas sobre o tempo. Dois franceses ao telefone conhecem bem as frases feitas que usarão entre si. Um rapaz que corteje uma moça deve saber quais palavras encaixar em que momento, para não passar por bárbaro. Até as gírias parecem seguir um padrão estabelecido pelos sábios barbudos do Renascimento. Bom, para preencher um formulário, é o ideal.

Esses tais sábios planejaram seu idioma em nome da retórica e do som. É aristocrático, algo esnobe, e cai facilmente no pedantismo. Como se sabe, em geral omitem-se as consoantes em finais de palavras. Em geral, eu disse. Há sempre exceções, e muitas. É fascinante; mas, para compreender ou expressar-se no idioma de Voltaire, um estudo profundo é condição exigida. Na poesia, nada mais francês do que os alexandrinos de Racine ou, vá lá, os decassílabos de Victor Hugo e Baudelaire. Na prosa, as detalhadas descrições de Balzac e Proust são o ápice da beleza francófona. Sei que, falando assim, sujeito-me à lapidação pelos entendidos, mas não posso deixar de sentir que as simplificações formais do modernismo, os versos brancos e livres, o tom coloquial, a liberdade, o estilo direto, deixaram esse rígido idioma em situação desconfortável.

Já o inglês, idioma da rainha e de Bill Gates, tem sido chamado de "novo latim". Em que pese minha opinião de que o antigo era mais belo e nobre, não se pode negar que o apelido é exato. O mais surpreendente é que a língua se presta perfeitamente a esse papel. Dizem que o inglês é metade alemão e metade francês. Mas, além dessas duas línguas, compõem o anglo-DNA uma boa meia-dúzia de outras, do dinamarquês ao hebraico (c.f. BERLITZ, Charles. As línguas do mundo). Com tantas influências, engendrou-se uma enorme facilidade para receber vocábulos estrangeiros e transformá-los em seus. (Nada mais eficiente como instrumento de dominação.)

É uma língua de monossílabos. Rápida, simples, quase infantil. Perfeita para chistes e gírias. Não por acaso, os primeiros não podem faltar no melhor da literatura clássica, de Shakespeare a Bernard Shaw; e as gírias percorrem o principal das obras modernas. Empresas de informática, a começar pelo Google, têm adotado a política de se comunicar com os clientes por meio de uma fala "jovem", ou seja, cheia de gírias (deles, claro). E funciona muito bem em inglês. Em português, soa artificial (c.f. Bluebus). Em francês, é simplesmente ridículo. Aqui, a prática está sendo abandonada. É a única língua em que o rock n' roll dá certo, na minha opinião.

Quanto a mim, escrevo em inglês quando sou obrigado a tal. Fora isso, às vezes me flagro com uma vontade enorme de usar o novo latim. Isso acontece quando o assunto são coisas sem importância, como a sujeira das ruas, ou comentários superficiais que se pretendem bem-humorados. Nada muito diferente, afinal de contas, do uso que fazem os próprios nativos.

Sou suspeito para falar do português. Minha relação com a última flor do Lácio é de natureza inteiramente diversa. Nasci e cresci mergulhado nela, ao ponto de desenvolver uma afeição indelével. Como falar friamente de um idioma que me atrai igualmente quando rasteiro ou pomposo, coloquial ou trabalhado? Admito que é impossível. Mas uma coisa é verdade: diante de pessoas que conversam em português, quer dizer, nosso português do Brasil, o estrangeiro tem enorme prazer em apenas escutar. Nossa fala é fluida, doce, melodiosa. É agradável.

O português é a língua perfeita para transmitir as impressões e sensações de um mundo que está dado e nos cerca, queiramos ou não. É a língua da conversa solta, da prosa que parece verso e do verso que parece prosa. Os franceses gostam de se considerar o povo da conversa vazia, o bavardage, mas eles se expressam por convenções e fórmulas que só fazem enrijecer o discurso. Nós nos expressamos em ondas e marolas. Já os documentos oficiais, talhados para o francês, soam tolos e pretensiosos em nosso idioma, e a fala marcial do inglês nos empobrece.

Machado de Assis não caiu do céu, nem Vinícius, nem Drummond. Já vejo muita gente torcendo o nariz, dizendo que isso é bobagem. Pois seja. É assim, fim de papo. Afirmo que nosso português é feito para que o ouvinte se perca no som e frua da melodia, mesmo sem prestar atenção no que está sendo dito. Quem discorda, que vá escutar as versões de Garota de Ipanema no original e em inglês, depois volte para responder em qual das duas a Helô Pinheiro parece mais bela e fresca.

Este não é um post científico. É a expressão da minha descoberta das línguas. Descoberta? Se eu já as conhecia todas? Conhecia, num certo sentido. Mas em outros, continuo sem conhecer. Ainda há o que descobrir, sempre haverá. Não me acusem de chauvinista pelo elogio ao português. Talvez seja saudade da pátria, não sei. Aprendi a valorizar cada uma delas em seu campo, não vou cair no papo de Heidegger, para quem só é possível filosofar em grego e alemão (embora, de certa forma...). Mas eu, pelo menos, só posso ser feliz em português.

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12.4.07

Seção Dedo de Prosa: O gesso

Desço uma das escadarias que me afastam dos fundilhos de Montmartre. Salto alguns degraus, ladeira abaixo, interessado pelas folhas escuras da hera que se vai encalacrando pelas antigas amuradas. Toda a algazarra do turismo ficou do lado oposto, disputando espaço com os ambulantes, os traficantes e os malandros de olhos afiados.

Cá nesta direção, vige o silêncio. Um respeito, tacitamente observado pelos moradores e passantes, à nostalgia que o nome do bairro faz revolver no pântano de cada alma. Não serei eu a ofender a memória dos lampadários e dos cafés, nem tenho pretensões de aceder aos mistérios de cada janela. Contento-me em imaginar, em projetar outros tempos.

Materializo, atravessando aquelas portas e derrubando aquelas cadeiras, uma multidão de imagens fantásticas, pessoas que conheço de ouvir falar, de ler as aventuras que viveram. Os boêmios, artistas, revolucionários, cujos porres, dramas, depressões, desgraças, foram muito mais agudas do que tudo que jamais viverei; mas cujos sonhos, obras e legados estarão eternamente além do meu alcance. Mais altos, talvez, do que a minha própria capacidade de admirá-los - e invejá-los.

Conjecturo: não teria sido uma tolice fabricada pela minha fantasia que conduziu meu passeio para estas bandas? Uma idéia de misticismo ingênuo, segundo a qual a simples presença pelos lados deste morro seria suficiente para me dar a absorver algo dessa grandeza? Nada! Muitos outros sonhadores irrelevantes, outros do meu feitio, certamente já atravessaram essas ruas com o mesmo misticismo no espírito, para depois retornarem a seus apartamentos e famílias, e finalmente desaparecerem pelas frestas da existência.

Desfalecendo rumo ao azul, estéreis da substância sagrada que emana do morro de Montmartre, os subúrbios disformes expiram sua fumaça. Toda essa malha rugosa faz parte da zona silenciosa, da qual tenta-se não falar nos cafés e bulevares freqüentados por estrangeiros. A não ser quando explodem as crises, os ataques, os carros queimados. Então, usa-se o número. É o Nove-Três, diz-se, e pouco mais. Um departamento habitado por gente de outras terras, mas não turistas; gente estranha, imigrantes oriundos das ex-colônias. Pronúncia diferente, gírias, crimes. Vai ver, é essa desencantada proximidade que afasta os turistas, apaixonados que são pelas belezas anunciadas nos monumentos, edifícios embalsamados, cujas paredes há tempos nada mais dizem senão o fato de serem o que são.

Mantenho os dedos próximos do corrimão, sem tocá-lo. Meus olhos tentam encaixar em seus limites todos os ângulos da enorme perspectiva. É curioso como a degradação social salvou esse pequeno canto, cheio de ladeiras, da degradação urbana que conquistou o resto da cidade, encarnada nas máquinas fotográficas e camisas floridas. Pôde-se manter, assim, uma certa brasa daquela velha Montmartre de absinto e pousadas baratas, poetas declamando nos bares, músicos quebrando seus instrumentos em brigas nas calçadas pelo amor de uma insensível prostituta.

Mas esses, ironicamente, foram tempos em que a vista dessas ladeiras dava para um vasto campo de trigais e bosques, dominados pelas torres da catedral de Saint Denis. Houve janelas, algumas dessas que hoje me espiam, de onde, há coisa de um século, gênios lançavam seus escrutínios para pôr em ordem, nas retinas, cores que dariam em tintas, que se absorveriam nas telas para, finalmente, calarem os olhos dos mais sensíveis.

Admito que meu passeio é vão. Esse tempo não voltará, definitivamente, jamais. Ao pé de mais um lance de escada, uma dessas bifurcações que caracterizam o bairro. Dois estreitos caminhos de paralelepípedo, ambos respeitando a tradição do muro de pedra coberto de hera. Farei o que me decidi a fazer desde o princípio desta caminhada, isto é, tomar o caminho indicado pelo acaso. Antes, porém, que meu guia se manifeste, algo me atrai a atenção. Um movimento ao final de um dos caminhos possíveis. O farfalhar de algum arbusto, alguém escondido, um animal em fuga, sabe Deus o quê.

Vou atrás. Nem aperto o passo, nem reduzo a marcha. Como se fosse meu caminho natural, e bem poderia sê-lo, eu o sigo. Quando passo, o movimento já cessou. Atiçado por uma curiosidade que não me é natural, volto sobre meus passos, decidido a investigar. Meto as mãos entre os galhos. A planta, como uma mulher inexperiente, põe-se a tremer, até que me atropela um corpo atarracado e mal-cheiroso. No susto, recuo dois passos e me vejo diante de um homem barbudo, baixo, boina xadrez e jaqueta de couro. Ele me pergunta, em tom cautelosamente agressivo, usando de um francês algo grosseiro: "T'es flic ou quoi?"

Mãos espalmadas, asseguro-lhe de que não sou polícia. Sou só um flâneur idiota e curioso um pouco além da conta. Ele mete entre os lábios um charuto amassado que vinha fumando. Posso notar que há gesso debaixo de suas unhas, e manchas brancas pelos dedos. Peço desculpas por importuná-lo, ele resmunga um "Je m'en moque" e se enfia novamente pelo meio da folhagem.

Impulsionado pela impressão que aquele homem me causou, sigo atrás, sem pedir licença. Mas ele em momento algum faz menção de me expulsar. Que charmosa descoberta, essa. O gesso se cola ao muro, aderindo e amontoando-se segundo as ordens desse homem, que trabalha freneticamente, em nada preocupado com minha presença. É um escultor. Enquanto ele mistura a água ao pó e atira a massa úmida sobre a pedra, fico a acompanhar seu trabalho, tentando deduzir que forma o artista pretende criar naquela superfície imprópria e isolada. Não consigo. Ele, absorto, nada diz.

Lembro-me de que há uma outra escultura na parede, em Montmartre. Homenagem a algum escritor, poeta, cineasta, já não sei. Com um pouco mais de atenção, posso perceber que há algo de humano nessa escultura, também. O tamanho, algumas curvas, uma certa tensão. Algo naquele gesso, ainda mole, respira. Ofegante.

Enfim, o artista permite-se uma pausa. Encara-me sem mais o menor traço de agressividade. Ao contrário, sorri. Parece cansado. Pergunto-lhe o que é. "Um homem", responde. Mostra-me os detalhes, apontando com um indicador gordo e torto. De costas, encurvado, o personagem enfia-se parede adentro. Sem demonstração de dor. Parece uma alusão à outra escultura, oficial, comandada pela prefeitura, que representa o homenageado saindo de um muro. Esta, oculta pela vegetação, criada por um artista sem nome, em lugar proibido. É como o perfeito oposto. Levanto a idéia da comparação, ele dá de ombros. Acaricia algumas das folhas que crescem pelo muro. "Espere só para ver a surpresa que terão no inverno", diz.

"Por que o homem se enfia no muro?", quero saber. Ele me pergunta se nunca tive vontade de entrar de cabeça numa parede. Se jamais me ocorreu que o ambiente em volta de mim pode ser hostil, pesado, insuportavelmente obscuro. Não respondo, mas internamente confesso que não.

Algumas pessoas, ele explica, têm uma alma muito vasta. Bela, mas além do que permite o mundo. Ou então, uma alma leve demais para a vida. Essas pessoas, diz o homem, erguendo e apertando os punhos, o mundo as abafa, as estrangula, ou gruda em suas veias como uma colônia de sanguessugas. Essas pessoas sabem que são combatidas pelo mundo, embora ele não forneça sinais exteriores da batalha que conduz. Elas querem combatê-o de volta, mas o mundo é o mundo. Não pode ser vencido. O homem se exalta, gesticula, faz caretas. Diz que o mundo, "hélas!", queima debaixo dos pés, congela em torno dos braços, aborta cada golpe e aplaude cada grito em meio a gargalhadas. Como se nossa vida, exclamou, nada mais fosse do que um espetáculo cômico!

Ele está exaltado. Salivando pelo canto da boca. Não entendo o que quer dizer, e mesmo as palavras, atiradas umas por sobre as outras, já não são mais compreensíveis. O escultor se dobra sobre o próprio eixo, alterado. Chego a crer que terá um enfarte, mas seu entusiasmo me fascina. Mantenho-me rígido, acompanhando seu discurso. A escultura incompleta vai secando, no ritmo do ligeiro calor que já começa a fazer. A luz, atravessando a folhagem, pontilha de brilho as costas encurvadas. Ainda restam duas horas de sol para o homem trabalhar, mas ele está absorto na descrição dolorosa de seu personagem.

De fato, a pouco e pouco começam a revelar-se na superfície do gesso as características que o homem me descreve. A infelicidade se faz presente nas dobras agudas do paletó. O peso do mundo produz uma concavidade no dorso. As veias do pescoço são expressivamente saltadas. O rosto já se misturou à pedra, já se espalha pelo limo. Mesmo destino das mãos e da perna direita. De súbito, porém, torna-se evidente o alívio da figura de gesso. Por mais doloroso que possa ser, é com alegria que ele se funde ao sólido e se esconde na parede. Não há um elemento que indique hesitação. Apenas um grande movimento de salto, abandono rumo à aniquilação.

Volto-me para o escultor. Ele está calmo, encara-me com olhos mareados. Pela primeira vez, posso observar que tem olheiras escuras. Não dizemos nada mais. Eu reflito, ele ofega. Após alguns minutos, ele desvia sua atenção para a obra interrompida. Contempla-a. Sigo seu exemplo. Bate o vento fresco, põe em movimento as manchas de luz. Por um segundo, penso que foi o próprio gesso que se moveu, seguindo sua marcha para a escuridão da pedra.

Mas quem se move é o artista. Com uma bufada, lança-se contra a própria obra. Enfia os dez dedos nos ombros de sua criação. Mole, o gesso cede. O criador puxa com violência, rosnando como um cão ferido. Em poucos segundos, é lançado ao chão pela própria força, levando entre os braços o torso da obra. Ao cair, um estrondo, ele machuca as costas. Geme. Não posso ajudá-lo, tenho os movimentos congelados e os olhos ainda fixos na parede, no ponto em que se fixava aquele pedaço de corpo. Da figura humana, restam apenas os braços, uma perna e uma mancha onde se ligava todo o resto. A topografia do muro me lembra um mapa de deserto.

Finalmente, o homem se vê livre do peso da obra. Atira-a para o lado, com esforço. Sua roupa está esbranquiçada. Ajudo-o a colocar-se sobre as pernas. Estou cheio de tristeza pela arte que se desperdiçou, mas ele tem o rosto iluminado. Solta mesmo uma curta risada, enquanto tenta captar no meu semblante os sinais de decepção. O homem de gesso, esquartejado, continua largado sobre a relva. O artista e eu encaramos, alternadamente, o torso esfacelado e as marcas na parede com que ele tentara se fusionar.

Espero do artista uma explicação. Lançando-me apenas olhares esparsos, ele tira do bolso aquele mesmo charuto, acende-o com um isqueiro metálico e recosta o ombro contra o muro. Sigo mudo, imóvel. Ele me provoca. Só tem um movimento mais acentuado quando conclui que terminou o charuto. Atira-o ao chão, amassa-o com o pé. Só então se volta para mim, o peito aberto em desafio, na ponta dos pés para reduzir a diferença de altura.

"Eh ben, voilà!", ataca, no tom mais incisivo que jamais ouvi em toda a vida. "O mundo venceu, como sempre."

E, sem mais, dá-me as costas e parte para a cidade. Abre o caminho entre as folhas usando a sola do sapato, na mesma postura da estátua que quis se fundir na pedra. Em poucos segundos, desaparece da minha vista. Deixa-me ainda imóvel, incapaz de compreender o que se passou diante de meus olhos.

Penso em levar comigo as sobras da escultura. Mas sou tomado por um desgosto nebuloso, em forma de melancolia. Para o artista que desistiu de sua obra, o desespero se manifesta numa vontade irresistível de entrar pelas paredes. Decepcionei-o por jamais ter sofrido desse impulso. Mas o que eu não lhe disse é que o desespero também existe em mim. Se ele não se manifesta de maneira tão arrebatadora, caro escultor, será talvez porque eu não possua uma alma vasta e leve como a sua.

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10.4.07

Ségolène x Romário numa tarde de domingo

Quer dizer, então, que nosso decano ídolo Romário decretou estar próximo de encaçapar seu milésimo gol. E diz a imprensa: "O Brasil prepara a festa". Parece irrelevante o fato de que o Baixinho fez dessa contagem um balaio de gatos onde enfia até os tentos marcados em peladas na praia. Pouco a pouco, nação brasileira, lá vai o Peixe. Rumo ao milésimo, cobrando seus pênaltis, algo que jamais falta ao seu Vasco. Mas está demorando. Suspense. Será que ele consegue? Quando sairá o gol mil que ele fabricou na sua cabeça? Quando Romário chegará a Volkswagen?

Tarde de domingo, lavo a louça com a televisão ligada. Tento tirar as manchas de arroz queimado do fundo da panela. Enquanto exerço minha pressão milimétrica, fico pensando que, se estivesse no Brasil, teria que acompanhar, pela telinha, alguma reportagem sorridente sobre a apreensão e a felicidade de Romário com a chegada de sua possível marca histórica, redondinha. Um número com que sonha desde que era bebê e chutava suas bolas no quintal, com o pai. Só alegria.

Mas acontece que não estou no Brasil. Enxugo as mãos com pressa, desleixado. Preciso aumentar o volume para escutar o que está sendo dito. É uma entrevista com Ségolène Royal, candidata do Partido Socialista às eleições presidenciais do próximo dia 22. Ela tem chamado atenção. É a primeira mulher com verdadeiras chances de ganhar a eleição na França; nas pesquisas, ocupa a segunda colocação (falando assim, parece Fórmula 1), logo atrás de Nicolas Sarkozy, que até há pouco era ministro do Interior. Um terceiro candidato, François Bayrou, da centro-direita (um tucano, digamos assim), morde os calcanhares de ambos, mas não deve chegar ao segundo turno.

Royal chama atenção, também, por ser talvez a única esperança de não ter na presidência um baixinho truculento, ambicioso e intransigente, que é como as pessoas vêem Sarkozy. O problema é que, ao contrário do que tentam mostrar, os franceses adoram gente truculenta e intransigente. Este povo encarna como ninguém o cinismo moral do século passado: discursam à esquerda, pensam e votam à direita. Sarkozy é o tal que chamou os jovens suburbanos de escória (racaille). Embora a palavra, tão forte, tenha levantado críticas pelo país, a verdade é que a maioria concorda. Em silêncio, naturalmente. E dão seu voto ao sujeito.

Parada dura para a representante da esquerda, se é que o PS francês pode ser chamado assim. Outro motivo pelo qual a candidata socialista chama a atenção são as gafes que solta, de vez em quando; mas se gafe fosse problema, nem Lula, nem Fernando Henrique teriam sido reeleitos. Bayrou tem roubado alguns votos por causa disso. Nada que chegue a assustar.

Mas volto à minha louça, mais urgente. Não havia escorredor para tanto prato. O jantar da noite anterior contara com convidados. Verdadeiros glutões. Da próxima vez, usaremos pratos de plástico. Mas a falta de espaço foi uma desculpa para deixar secando tudo aquilo e ir grudar a cara na televisão. Para quem está acostumado com a relação entre imprensa e política no Brasil, como eu, a maneira como os jornalistas entrevistavam a candidata era marcante.

Os políticos do século XXI estão se especializando em duas coisas: a "numeralha" e as generalidades. Neste pleito, Sarkozy representa a numeralha. Todo mundo sabe que a criminalidade e o desemprego estão cada vez mais fora de controle, mas ele sempre tem uma porcentagem para tirar da cartola, normalmente baseada em coisa alguma. Royal, mais humana, ocupa o nicho das generalidades. Um jornalista perguntou como ela pretendia fazer passar seus projetos ambiciosos. Ela respondeu que criaria um consenso, um lindo consenso, "com todos os franceses".

A partir desse ponto, a coisa endureceu. O jornalista produziu uma das milhares de expressões faciais tipicamente francesas. Perguntou a ela se a idéia não lhe parecia fantasiosa. "Consenso com todos os franceses, como? Na porrada? Quem são todos os franceses?" E mais uma expressão facial, daquelas especializadas em ridicularizar um argumento. Na minha ingenuidade brasileira, considerei a atitude de um enorme mau-gosto, um desrespeito do entrevistador para com a entrevistada. Pensei que poderia ser um jornalista machista, ou direitista, ou ambos. Deplorável, em todo caso.

Mas Ségo (os franceses adoram diminuir os nomes. Sarkozy, por exemplo, é Sarko), contra minhas expectativas, não pareceu se abalar. Respondeu que ele tinha uma visão ultrapassada, ou melhor, antiquada da política. Era, de fato, um homem velho. Argumentou Ségo que as velhas divisões não existem mais, que o entrevistador deveria estudar e se informar melhor. Tudo isso, naturalmente, na maior elegância. Mas o rigor dos ataques e contra-ataques só fez aumentar. A cada generalidade que ela dizia, uma expressão facial do repórter. A cada réplica dele, uma cacetada dela. Foi assim, a tal entrevista. Eletrizante, muito melhor do que thriller de Hollywood. Lamentei não ter visto a de Sarkozy, na semana anterior.

Ao final do programa, de volta à louça, lembrei-me de Romário, das campanhas políticas brasileiras, de nossos jornais. No Brasil, constatei, um jornalista jamais coloca um candidato contra a parede. Pelo menos, não dessa maneira. Em 2002, em pleno Roda Vida, Lula declarou que FHC foi o pior presidente de nossa história. Uma história que já teve Médici, Jânio, Floriano Peixoto. Todos os jornalistas discordavam, mas deles emanou apenas um ar perplexo. Só uma, timidamente, perguntou: "Tem certeza, candidato?" Ao que Lula, simplesmente, com toda convicção do mundo, respondeu: "Tenho." E ponto.

O jornalista, no Brasil, só quer terminar bem seu programa ou fechar bem sua edição, sem sobressaltos, em paz, com os anunciantes garantidos e o emprego, idem. Nossas empresas de comunicação, como bem sabemos, estão todas quebradas, dependendo da boa-vontade do governo. Quem terá coragem de espremer os representantes do poder? Até entendo. Mas não tenho mais vontade de assistir a debates presidenciais ou entrevistas com políticos brasileiros. Já sei que serão frios e insossos.

E o Romário, que tem a ver com isso? Nosso ídolo nacional, herói da Copa de 94, gênio da pequena área. E agora, faz papel de palhaço ao inventar esse tal milésimo gol. Provavelmente, até o Eurico Miranda reconhece ser uma tolice. Mas não há, nessa patotinha que é a imprensa esportiva brasileira, um mísero profissional que aponte o dedo para a megalomania. E quando sair o tal do gol? O Peixe vai dedicá-lo às criancinhas, como Pelé? Terá de ser de pênalti, contra um goleiro argentino (contra o Vasco, acho difícil, só se...), no Maracanã? Vão interromper o jogo?

É claro que a imprensa não quer estragar a festa. Por que fazer bom jornalismo, se estampar um pôster do baixinho no jornal de segunda-feira venderá mais? Assim tentam sobreviver nossos periódicos. Com essas faíscas de assunto, esses factóides impactantes. Só que Romário não faz o "milésimo" gol todo dia. O jornal de terça não terá a mesma graça que o de segunda. Sem nenhum gol simbólico a comemorar, restará aquele texto anódino que só serve para embrulhar peixe. Sem pressão da imprensa, cada um, e falo dos governantes, faz o que quiser. O país segue se esfacelando, a população vai perdendo o interesse pelos jornais ocos. E eu, em particular, terei de lavar a louça assistindo a desenhos animados.

Conclusão? Ainda bem que existe a internet.

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7.4.07

A falta que faz a filosofia

Aviso desde já que esta postagem, cujo título é uma aliteração tão cretina, não fala de belezas, nem alegrias. Quem estiver interessado em flores e primavera, peço que tenha a gentileza de descer até o próximo texto; ali, garanto que encontrará o que procura. Este aqui, confesso, é chato, denso, comprido (aliás interminável) e, finalmente, muito teórico para um blog (como dizem). Tento ao máximo evitar esse tipo de abordagem neste espaço porque, se já é difícil acompanhar os textos como eles são, imagine se houver uma argumentação intrincada. Mas acontece que o assunto me chamou a atenção; não tenho como deixá-lo passar.
Soube pelo blog Contemporânea e pelo Jornal da Ciência que o STF convocou 17 pesquisadores para debater "quando a vida começa", antes de votar uma ação de inconstitucionalidade que exige a proibição da pesquisa com células-tronco embrionárias que não foram usadas para a inseminação artificial. Para quem não se lembra, as pesquisas foram autorizadas por uma votação parlamentar, há dois anos, com atuação decisiva de Ana Cristina Cavalcanti, filha do Severino que foi um dos mais folclóricos presidentes da nossa Câmara.
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A iniciativa não deixa de ser louvável; pesquisas com células-tronco são um dos campos mais avançados e promissores da ciência. Podem fornecer a cura de uma infinidade de doenças e a resposta para algumas das questões mais antigas sobre a vida humana. Ao mesmo tempo, é um assunto controverso. Se os embriões a pesquisar forem considerados indivíduos, usá-los como cobaias ferirá o mais básico princípio ético da modernidade, isto é, a sacralidade da vida humana, sua inalienabilidade e soberania.

Está longe de ser um problema simples, e o Tribunal tem toda razão em consultar especialistas antes de se decidir. Proibir as pesquisas pode colocar o Brasil ainda mais para trás em termos de desenvolvimento tecnológico, mas não há corrida científica que justifique tratar o ser humano com leviandade. Há quem proponha um plebiscito, mas essa não seria uma solução adequada. Plebiscito algum pode ter a legitimidade de autorizar o assassinato.

Mesmo assim, vou dar uma de chato e fazer uma crítica. A questão está colocada de uma maneira fundamentalmente errada, que foge ao ponto e mostra o quanto a filosofia, tão criticada e considerada inútil por muita gente boa, pode fazer falta. E não é uma questão qualquer. Envolve igualmente a problemática do aborto. Depende dessa decisão jurídica o ponto em que a interrupção da gravidez será aceitável. No limite, até mesmo a pílula do dia seguinte está em risco, se ficar "constatado" que a vida "começa" no próprio ato da concepção.

"Onde começa a vida?", pergunta o STF. Ora, não se trata em absoluto de descobrir onde a vida começa. Uma criança é produto de dois adultos vivos; o espermatozóide é uma célula viva, o óvulo também. Depois da concepção, o resultado do encontro desses dois corpúsculos vivos resulta em uma célula viva, que se divide em duas, depois quatro, depois oito. Em breve, temos um embrião: vivo. Mais tarde, um feto vivo, um bebê vivo e, finalmente, uma pessoa com nome, CPF e dívidas a pagar.

Onde começa a vida? Colocada assim, a pergunta só tem uma resposta possível: a vida começou na Terra há 4 bilhões de anos. Desde então, jamais deixou de existir e, ainda por cima, há teorias para as quais ela veio de outro mundo, na cauda de um cometa, e seria, portanto, muito mais antiga. Mas essa resposta é um pouco infantil, não ajuda nossos juízes, em Brasília, a decidir se as pesquisas com células-tronco devem ser proibidas ou não.

Mas, tudo bem, pelo menos já avançamos um pouco. Em vez de perguntar "quando começa a vida", poderíamos mudar para "quando começa uma vida". Parece uma mudança boba, coisa de gente chata, que se perde em discussões semânticas estéreis. Mas a diferença é fundamental. Quando falamos em "uma vida", a referência imediata que fazemos é a um indivíduo, naturalmente. A questão, portanto, torna-se "Como podemos determinar o início de um indivíduo?" ou, mais precisamente, "Quais são os limites cronológicos de um indivíduo?" e, finalmente, acima de todos esses questionamentos, o mais fundamental de todos: "Que raios é, afinal de contas, um indivíduo?"

Pois essa questão, infelizmente, não tem resposta. O indivíduo é um tema recorrente na filosofia desde seu berço grego, e não deixou de sê-lo jamais. Foi discutido por gente de calibre, como Leibniz, Sto. Agostinho, Descartes, Sartre e, enfim, quase todo mundo. A idéia do que seja um indivíduo, qual seu valor, de onde vem, para onde vai, e assim por diante, sofreu uma infinidade de mudanças desde que se começou a pensar. Até hoje, não temos resposta. Voltaremos a isso, se você tiver paciência de continuar lendo.

Como vimos, a questão, aparentemente simples, que o STF pretende discutir com seus 17 sábios é, na realidade, infinitamente complexa e profundamente filosófica. Entretanto, de todos esses especialistas chamados, não há um, nenhum, zero, que seja filósofo. Pelo menos, não na vida profissional. Há médicos, geneticistas, farmacêuticos, advogados, antropólogos. No dia 20 de abril, estarão sentados diante dos ministros do Supremo para responder a uma questão filosófica irrespondível.

É evidente que, com esse time, a abordagem será eminentemente prática. Isto é, vão tentar encontrar um critério aceitável para determinar um ponto a partir do qual se declarará que aquele agrupamento de células que foram concebidas no útero da mulher é, juridicamente, a pessoa que será depois que nascer (se nascer). Lamento informar que o critério, por mais sérios e especializados que sejam os cientistas, será aleatório. Se não for aleatório, será determinado por convicções pessoais dos sábios... e dos ministros. Voltaremos a essa questão mais tarde, também.

Quais são os postulantes a "momento M" de começo de uma vida? Os religiosos mais radicais já determinaram: é no exato momento em que o espermatozóide atinge o óvulo. Condenam, assim, a famosa pílula do dia seguinte, como assassina. Outros podem dizer que é a partir da fixação do embrião na parede do útero. Até então, pode ser apenas um aborto natural, se é que essa palavra pode ser usada.

Desculpe, corrijo-me: falei em religiosos mais radicais, mas existem alguns ainda mais radicais, que chegam ao ponto de condenar a masturbação com base no argumento de que o esperma ejaculado já contém "vidas". Mas isso não é assunto para este texto.

Os geneticistas poderão dizer que o indivíduo se torna independente no instante em que as duas metades de código genético, do pai e da mãe, se misturam e formam um só. É o código daquela pessoa em formação. Para um materialista genético contemporâneo, isso é o indivíduo. Mas nem todo mundo é materialista genético contemporâneo, claro. Um outro geneticista, mais interessado nas pesquisas com células-tronco, dirá que só há, propriamente, um indivíduo quando as células se diferenciam em suas funções específicas. Outro, ainda mais mecanicista e, cá entre nós, bastante romântico, argumentará que, enquanto não há coração batendo, o feto é apenas um corpo estranho no ventre da mãe.

Já uma feminista radical, querendo ampliar o prazo para a realização de um aborto, se ele for legalizado, naturalmente, dirá que esse corpo estranho continuará não sendo mais do que isso até o momento em que ele aja por si próprio, ou seja, chute a barriga da mãe, trema ao escutar a voz do pai e assim por diante. Isso só acontece quando se desenvolvem os primeiros neurônios do cérebro.

A brincadeira pode estar chata para o leitor, mas para mim é divertidíssima. Vou continuar radicalizando. O que impede alguém de afirmar que só há, de fato, uma pessoa a partir do nascimento mesmo? Nada. Não faz muito tempo, bebês nascidos mortos eram simplesmente jogados fora. Não na lixeira, claro. Eles eram enterrados como pedaços de carne, não como gente falecida. Por quê? Muito simplesmente porque, segundo algumas leituras da tradição católica, a pessoa só passa a existir depois do batismo. É uma leitura extrema, bem sei. Mas é engraçado que, hoje, sejam justamente os religiosos que procurem antecipar ao máximo o surgimento do indivíduo sagrado, inalienável, soberano.

Ainda mais um pouco: Para algumas tradições, é um indivíduo aquilo que se pode nomear. Um boi, no meio da boiada, não é um indivíduo, mas aquele bezerro que um pai dá de presente à sua filha, que ganha o nome do cachorro morto no ano anterior, cresce no meio da família e todos amam, eis um indivíduo. Tente mandar esse boi para o abatedouro. Observe a reação da família. Desse ponto de vista, o bebê é gente quando lhe indicam um nome. Fácil, não? Os pais só não podem demorar demais, senão acaba nascendo nada mais do que um bicho selvagem...

Finalmente, a radicalização final. A idéia de indivíduo que temos hoje é fruto da revolução burguesa e, principalmente, do Iluminismo. Para nós, parece intrínseca à nossa humanidade, mas não é. Para muitas formações sociais, o bebê que nasce não é um indivíduo, de fato... nunca. O exemplo radical está em Esparta, essa curiosa cidade grega que vive atualmente seus quinze minutos de fama entre os adolescentes. Quem nascia, nascia para o Estado. Só poderia sobreviver até a idade adulta se estivesse dentro dos padrões do Estado e fim de papo. Caso contrário, morreria no caminho, e não haveria quem chorasse por ele.

O mesmo ideal se encontra em Platão, com um ponto de vista menos violento, mas próximo. Escravos, nem em Roma, nem no Brasil, eram indivíduos. Nas sociedades aristocráticas, leia-se Europa, apenas os nobres o eram verdadeiramente, até que os burgueses enriqueceram e exigiram seu lugar ao sol. A chamada "massa" só obteve seu reconhecimento individual graças a algumas cadeiradas, a partir do século XIX. No século XX, finalmente, temos mais de uma experiência de aniquilação do indivíduo, em Estados totalitários para os quais cada pessoa não era senão uma engrenagem.

Isso não quer dizer - caro leitor resistente que não interrompeu a leitura até aqui - que no século XXI o indivíduo seja uma entidade plenamente garantida. As idéias democráticas da liberdade individual acabaram resultando num individualismo tão exacerbado que anulam o próprio indivíduo. No meio da multidão, a dificuldade em se diferenciar leva as pessoas a atitudes as mais idiotas. Entre no orkut e veja quantos perfis estão preocupados, desesperadamente, em afirmar a individualidade do titular daquela página (entre tantas outras iguais). Mas, se cada "eu" se desdobra em e-mail, orkut, MSN, Second Life e o raio que o parta, onde está o indivíduo, de fato? Em breve, teremos que nos colocar a questão. Se roubarem minha senha e postarem no meu lugar, quem serei "eu"? Se eu morrer e meus amigos continuarem postando com meu nome, quem sou "eu"?

O assunto é fascinante para quem gosta. Pouca gente, claro. Em jogo, uma série de outras dimensões muito complexas; sou um indivíduo por inteiro, ou cada parte de mim também é uma manifestação individual de mim? Meu indivíduo está só em meu corpo, só em meu pensamento, numa estranha mistura de ambos? E assim por diante. Ao final, a pergunta conduz a becos sem saída, como a existência da alma; se essa alma é imortal; se ela já existia antes de mim. Entra-se no campo de conceitos como essência, substância, contingência. E onde é que se sai?

É por isso que a ausência de filósofos no debate do STF não chega a me surpreender. Os ministros precisam de um critério simples, claro, direto e, principalmente, prático. Se houvesse, porém, um mísero calouro de filosofia que fosse, mesmo o maior dos néscios na área, uma barreira sólida seria atingida. Essa barreira é como segue.

É impossível a um Estado laico proibir legitimamente as pesquisas com células-tronco, com base em critérios indubitáveis. Com base na dúvida, talvez. Mas um dos princípios do Estado democrático de direito é a permissão em casos de dúvida. Com um pouco mais de polêmica, o mesmo é válido para o aborto.

Qual será, então, o critério de escolha dos ministros? Ora, será o mesmo de sempre. Um equilíbrio incerto entre as inclinações de opinião de cada envolvido e as pressões exercidas por grupos sociais. E os grupos que exercem mais pressão, como sabemos, são ligados a Igrejas. Por sinal, a convocação dos 17 cientistas, idéia do ministro Carlos Ayres Britto, tem como motivo o julgamento de uma ação de inconstitucionalidade movida por um ex-procurador geral da República, Claudio Fonteles, ligado à Igreja Católica.

Tudo isso só complica mais ainda a questão. Primeiro, temos uma discussão filosófica levada a termo sem a presença de filósofos, a partir de uma pergunta mal formulada. Em seguida, temos um Estado laico constantemente ameaçado por grupos religiosos. Finalmente, esses mesmos grupos religiosos, ao se imiscuírem em assuntos de Estado, ou seja, seculares, rompem com uma das lições mais importantes do Novo Testamento, um princípio fundamental, que é uma das maiores diferenças entre a Bíblia e, por exemplo, o Corão: "A César o que é de César, a Deus o que é de Deus". Do ponto de vista dessa frase do próprio Cristo, um grupo religioso que se mete em assuntos de Estado está, pura e simplesmente, pecando.

Agradeço a você, único leitor que chegou ao último parágrafo, mesmo sabendo que nada disso vai mudar sua vida diretamente. Você é um bravo. Um monte de parágrafos, tempo perdido na leitura, e a questão não está resolvida. Pelo menos, conhecemos melhor o que está em jogo, não? Ao STF, deixo um pedido: ao discutir questões conceituais, chame aqueles cujo trabalho está voltado especificamente para os conceitos. Chame filósofos. Torna as coisas mais complicadas, mas menos vagas.

4.4.07

April in Paris

"Eu não conhecia o charme da primavera, nunca a tinha visto face a face". É a voz dolorosa de Billie Holiday que suspira, que tritura as palavras. Essa mulher, meu Deus, realça em qualquer canção a angústia do artista, incapaz de traduzir em sua obra a beleza que pressente, a poesia que enxerga de olhos fechados. "Eu não sabia que meu coração era capaz de cantar." Uma mentira de Ella Fitzgerald, precisa e extraordinária como sempre, acompanhada dos improvisos de Satchmo, o gênio. Esses versos se repetem, com Oscar Peterson, Charlie Parker, Frank Sinatra, Sarah Vaughn, tantos outros.

"Till April in Paris", diz a canção. Abril em Paris. Yip Harburg passou a primavera de 1932 em passeios no jardim de Luxembourg, não tenho dúvidas. "Os castanheiros em flor" e "as mesas sob as árvores" se gravaram em sua lembrança. Tão forte que precisou imortalizá-los, na letra que escreveu para a música de Vernon Duke. Versos impressionistas, simples que quase tolos, de um homem que relata seu instante de alegria, um momento cuja beleza lhe escapa.

Entendo muito bem o que diz a música. Abril, em Paris, atenta contra as limitações do senso estético. Nas árvores que ladeiam os bulevares, uma mudança lenta. Primeiro vêm os botões, como bolinhas discretas nas pontas dos galhos. Quase imperceptíveis, sem cor, nada mais do que uma variação no formato da madeira. Não valem um olhar de quem passa afobado, despenteado, atrasado, e logo se enfia no buraco do metrô.

Como pude não perceber a mudança? Quando é que aquela bolinha desprezível se tornou verde? de uma cor tão viva como jamais vi, o corpúsculo enrugado que resultará em uma meia-dúzia de folhas. Uma infinidade em cada galho, em cada árvore, em cada rua. Pontilhando o dia-a-dia, os caminhos, as esquinas.

Eu, toupeira humana, olho em volta, embasbacado. Uma surpresa a cada movimento. A cor está em todo canto. Abaixo dos galhos pontilhados em verde, os canteiros. Longas carreiras que pareciam, até então, tristes sepulturas de terra pálida. Agora, tão súbita, uma explosão asfixiante de pétalas e caules. Flores novas, folhas virgens, pinceladas de vida em vermelho, amarelo, branco, azul. Um coral que recitará, até princípios de novembro, sua ode anual à natureza. E então, obedecendo à sua finitude implacável, secará, tombará, morrerá, para mais um período de frio e trevas.

Como na canção, jamais conheci o charme da primavera. No Brasil, marcava o início o horário de verão, nada mais. O verde brasileiro é tão verde nessa época quanto em qualquer outra. Flores, sempre há. De tão evidente, a beleza brasileira intimida, às vezes. Aqui, a beleza brota como uma resposta à opressão do inverno, uma vitória daqueles que sobreviveram, uma ressurreição mitológica revivida a cada ano. A mística que cerca o equinócio é profunda, ancestral, dionisíaca. O movimento é patente. Mesmo nas metrópoles pós-industriais e cibernéticas, mesmo numa cidade que praticamente aboliu a neve, como Paris, ainda se vive submetido às circunvoluções da natureza. O europeu, que coisa irônica, é mais ligado à terra do que nós.

A beleza brasileira é tanta que se sufoca. E nos sufoca. Talvez seja por isso que temos tanta necessidade de abafá-la, construir sobre seus despojos nossas cidades deploráveis. A natureza brasileira é de uma exuberância extasiante, mas constante e inabalável, senão pela força dos machados e a reverência do concreto. Nossa beleza, às vezes, nos enche de vergonha, nos lembra nossa condição de pátria crua. Precisamos substituí-la por uma máscara de siso repugnante. Uma necrópole em movimento, São Paulo. Um organismo que alimenta seu próprio cancro, o Rio de Janeiro. Brasília, ângulos retos, vidas tortas e um lago de mentira no meio do deserto. Por quê? Não podemos aceitar nossa própria exuberância.

Nos auges de sua estupidez atávica, fizeram coisa muito parecida, os europeus. Mas quando entregaram suas cidades à insensatez destrutiva, seus espíritos não resistiram. Atiraram-se uns sobre os pescoços dos outros. Esses povos, para quem a beleza é um milagre, que lhe sorvem cada gota como a última esperança de alegria, não podem suportar a idéia de perdê-la em definitivo. Caso contrário, entregam-se à carnificina.

Que o fim do inverno tenha tanto impacto sobre mim, compreende-se. Cachecol e sobretudo são, para mim, meio passo rumo à cova. Mas os americanos que compuseram April in Paris, e a repetem à exaustão, conhecem perfeitamente as quatro estações, com até mais rigor do que os europeus. Se são atraídos por este mês especificamente em Paris, é porque algo de especial existe, de fato.

O quê?

Sou forçado a concordar com os versos vagos de Yip Harburg. O abril parisiense é uma força que se exerce sobre o espírito sensível. Van Gogh se exasperava por não conseguir expressar, pintando, o que sentia. E deveria ser estratosférico; expressão não falta a suas telas. Tento captar algo com minha câmera furreca, mas sei que nem mesmo a mais perfeita das Leicas poderia me satisfazer. Saio a caminhar. Entro nos parques, nas praças. Ladeio o Sena, observo os casais, os mendigos, os violões, as bicicletas. Ainda assim, não consegui extrair disso nem sequer uma postagem que reproduza a misteriosa vibração que se esconde nos troncos, nas nuvens, em toda parte. Nem um mísero poema, uma fotografia, nada. O que me resta é seguir, mãos nos bolsos, assoviando a música que, há sete décadas, alguém compôs para manifestar algo muito parecido com o que vivo. Assoberbado, mas conformado, invoco Billie Holiday, invoco Ella Fitzgerald, e mergulho nos brotinhos verdes.

April in Paris
Yip Harburg e Vernon Duke
.
I never knew the charm of spring
I never met if face to face
I never knew my heart could sing
I never missed a warm embrace
.
Till April in Paris,
chestnuts in blossom
Holiday tables under the trees
April in Paris, this is a feeling
That no one can ever reprise
.

I never knew the charm of spring
I never met it face to face
I never new my heart could sing
I never missed a warm embrace

.
Till April in Paris
Whom can I run to?
What have you done to my heart?

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2.4.07

A mesma bagunça de outrora

Nas últimas poucas semanas, aprendi mais sobre o mundo dos blogs do que em toda a minha vida, ou melhor, em todos os dez enormes meses em que existe o Para Ler Sem Olhar. Parte disso se deve à ajuda inestimável do igualmente inestimável Marcão. O resto, ao fato de que comecei a fuçar, depois de descobrir que a coisa é mais séria do que imaginava. Para falar a verdade, sempre soube que eu era um dinossauro no que tange à net. Em outras palavras, um dinossauro pura e simplesmente, porque a net, hoje, é a vida (falando nisso, esse tal de Second Life...).

Nos últimos tempos, tenho descoberto que não era apenas um dinossauro. Era um ingênuo cibernético. Uma criança. Quando soube que já há quem blogue (do verbo blogar!) por dinheiro, caí para trás. Não estou falando dos quarenta e tantos centavos que ganhei no Adsense desde dezembro. É gente que se sustenta com o que um dia foi apenas um diário aberto na internet. Há coisa de um mês, ousei associar o blog à idéia de liberdade. Nada! Essa barreira já foi rompida há muito. Blog, hoje, é coisa séria. Não raro, é negócio.

Até há pouco, costumava circular apenas em blogs de conhecidos, que publicavam seus pensamentos, arriscavam sua literatura, arranhavam uma poesia. Mais ou menos como eu. Para mim, "RSS" era o Rio Grande do Sul com erro de digitação, e "Feed" era música de Mary Poppins (o nome correto, na verdade, é "Feed the birds"). Mas aí vieram as dicas de Marcão, que bagunçaram meu coreto. Tive que repensar os conceitos e me retratar comigo mesmo por dar um diagnóstico tão precipitado, com parco conhecimento de causa.

Decidido a repensar a questão, lembrei-me de um livro excelente para quem se interessa por jornalismo, televisão, mídia, enfim, comunicação em geral. Chama-se "Uma história das mídias", de Jean-Noël Jeanneney, que não sei se teve tradução no Brasil, mas em Portugal chama-se "Uma história da comunicação social". Jeanneney foi presidente da Radio-France e diretor da Biblioteca Nacional francesa. É um dos principais nomes por trás da Europeana, iniciativa deste vetusto continente que se pretende uma contrapartida à biblioteca digital do Google. Ou seja, é alguém que sabe do que fala.

A certa altura de seu livro, Jeanneney descreve o estado geral da publicação de jornais na França revolucionária, em torno de 1791. As corporações, que limitavam o acesso de editores ao mercado, haviam sido abolidas. A velha prensa de Gutenberg se popularizara a tal ponto que imprimir um jornaleco de quatro folhas era possível para qualquer burguês de meia-pataca. Vendidos a preços irrisórios, houve um momento em que se imprimiam quase 200 títulos diferentes a cada dia. Todos os grandes nomes da Revolução tinham o seu jornal. Desmoulins, Marat, Sieyès, Robespierre, Danton... De fatos, grande parte deles eram considerados jornalistas, se é que o nome se aplica ao período.

A rigor, pode-se dizer que era uma bagunça. Cada um escrevia o que queria. Sobretudo, cada um lia o que queria. As polêmicas e os vitupérios não se limitavam às generalidades que vemos nos jornais de hoje. Usavam-se os nomes verdadeiros dos alvos, não havia preocupação alguma em verificar informações. Era, para resumir, uma bagunça, como eu disse.

Depois, naturalmente, vieram o Diretório e o corso terrível, Napoleone Buonaparte. Como em praticamente todos os domínios, restabeleceu-se a ordem na casa, graças a um punhado de leis e uma leva de punhaladas. A imprensa foi, pouco a pouco, tomando corpo. Ao longo dos dois séculos seguintes, surgiram os grandes jornais, as redes, os conglomerados. Em pouco tempo, o Quarto Poder era um elemento fundamental.

O que tem isso a ver com a atualidade dos blogs? Tudo, evidentemente. Quantos blogs existem no mundo? Já ouvi dizer que eram 30 milhões, depois 40. Não sei se os dados são confiáveis, mas não duvido. Basta clicar um pouco na internet para cair sobre uma infinidade. Há todo tipo de página, desde a adolescente que não sabe escolher a roupa da formatura, até jornalistas consagrados, de cabelos brancos, forçados a manter o bendito blog para que a empresa em que trabalha não fique para trás da onda tecnológica. Isso para não falar dos blogs de políticos e até ex-blogs...

Há algumas páginas com dezenas de milhares de leitores diários. Eu, quando chegar a cem num só dia, abrirei uma garrafa de espumante barato. Há blogueiros que formam opinião, outros que publicam seus livros aos poucos. Há, ainda, os difusores de teorias da conspiração e os fanzines. Há tudo. Como não poderia deixar de ser, quando se trata desse bicho chatinho que é o ser humano, há gente que tenta normatizar a vida alheia, dando lições do que deve e não deve ser o blog do próximo.

Mas, como eu disse da outra vez, os grupos se formam naturalmente, em torno de temas comuns, opiniões, amizades. As ligações por meio de links tendem a formar núcleos, não tão fechados quanto clubes sociais, claro, mas com uma certa estrutura. Portanto, algum processo de organização já está em marcha. Existem agregações de blogueiros que podem perfeitamente descambar em sindicatos, se deixar. Vão acabar querendo regulamentar a "profissão", e uso aspas não para criticar quem faz do blog uma profissão, mas quem rejeita o lado lúdico e livre do fenômeno.

O fato é que, muito mais do que no caso dos jornais oitocentistas, todo mundo pode ter um blog. Verdadeiramente. É fácil, e qual é o custo de mantê-lo? A princípio, apenas um: o custo de oportunidade, ou seja, o que se deixa de ganhar por estar blogando e não fazendo outra coisa mais produtiva, como investir na bolsa ou lavar carros. Esse custo existe, é de fundamental importância, mas é, às vezes, tão baixo que ninguém se lembra dele, nem mesmo os economistas.

A não ser por uma canetada, não há jeito de colocar uma ordem definitiva, e provavelmente indesejável, na anarquia da blogosfera, pelo menos no curto prazo. Sempre haverá a possibilidade de um garoto, cheio de minhoca na cabeça, começar a postar no Blogger ou no Wordpress. Sem uma atitude despótica e irresponsável de algum Napoleão da Praia Vermelha, a liberdade desse universo seguirá, firme e forte. Contra qualquer tendência de organização. Mas nunca é demais lembrar que o Brasil é, por excelência, o país da canetada. Atitudes despóticas e irresponsabilidade estão longe de nos serem estranhas.

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